Café Alexandrino - O lado aromático da vida

quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Quando se deve deixar escapar uma lágrima

Ensaio

A Ricardo Gurgel



E me escapou uma lágrima.

Perda de final de campeonato? Não, independente do esporte e, menos ainda, se está jogando ou assistindo passivamente. Não. Nesses momentos não me deixo escapar lágrimas. Eu grito, enraiveço-me e acompanhado de soluços derramo lágrimas traiçoeiras.

Conquista de uma vaga no emprego? Essa situação passa longe: pulo, abraço, saio para jantar, distribuo beijos a quem amo (recebo aos montes também) e sorrio muito a ponto de chorar -- doce água abençoada --, e com veemência.

Ah, já sei! Perda ou saudade de um grande amor? Talvez alguns de vocês pensem assim. Claro que não! Canto, canto muito nessas horas. E o canto é de um gosto acre, na escuridão, e com muitas pausas -- sempre impedindo águas torrenciais de inundarem meus olhos e afogarem minha boca.

Traição? Desfaleço.

Um corte profundo, talvez? Insistentemente não. Meu corpo treme, queima, dói, xingo tudo e todos! E sofrendo derramo lágrimas à contra-gosto.

Injustiça? Luto.

Nascimento de um filho? Nada disso. Nessa ocasião eu viro profissional: bato foto, filmo, escrevo (tudo com um ar abobalhado). Nessas horas, até as lágrimas descem dançando.

Morte? Malditas lágrimas de sangue.

Laureado de turma? Nota mais baixa? Final de férias? Perda de dinheiro? Ganhar muito dinheiro? Não receber ligação da amada?
Não, não e não.Tantos momentos tristes e alegres com as mais variadas atitudes, mas com algo em comum: não deixo escapar uma lágrima. Elas saem em bando e de fugitivas.

Uma situação, porém, por mais singela que seja, é o suficiente para eu dar o passaporte de liberdade para essa companheira muitas vezes rebelde, outras vezes melancólica.

Deixo o frio tomar conta do meu corpo na preparação do calor intenso logo a seguir. Fixo o olhar, ao mesmo tempo em que desligo do mundo, enquanto ela vai tomando conta da órbita que tanto conhece. Não faço objeção. Depois, sinto-a molhando meus cílios e tomando forma na iminência de escorrer em gota. Ela cumpre seu papel. Minhas mãos ficam paradas e deixo-a escolher seu trajeto até dissolver-se invisível, e é nesse momento que acordo, ou melhor dizendo, eu nasço.

Esse momento é único todas às vezes. Ah...Benditas palavras de carinho -- inesperadas e gratuitas -- de um amigo sincero para renovar minhas esperanças em cada nascimento.

João Antonio Ribeiro



Ao som do 'Barulho da Chuva'
Degustando Cappuccino
Posted by PicasaImagem: 'La lágrima' - Perenzalez

segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

Uma História de Natal

Crônica


Desde que acordara Lívia percebera que aquele dia era um dia diferente, especial. Ainda de manhã cedo notou uma correria danada, engarrafamentos, todo mundo se acotovelando dentro das lojas, correndo e escolhendo mil presentes de todos os tipos e cores. Em sua pequena idade, ela ainda não entendia o porquê daquilo tudo, só achava que tinha alguma coisa a ver com aquelas árvores todas coloridas com luzes piscando em seus galhos que havia tomado a cidade já há um mês e com um velhinho muito simpático sempre todo vestido numa roupinha vermelha. Apesar dela não ter a mínima idéia do que era aquilo, parecia sentir-se bem só por poder ver e presenciar tudo aquilo.

Lívia então seguiu assim seu dia, observando o movimento das pessoas ao mesmo tempo em que seguia procurando os papelões das caixas dos presentes no lixeiro de cada prédio para colocar em sua carroça. Estava admirada com a quantidade de papelão que estava conseguindo juntar naquele dia, tudo por conta das caixas dos presentes! Seria realmente uma grande festa!

Ao final da tarde Lívia foi notando também o grande movimento que começara a tomar os salões de beleza. Ficava embasbacada ao ver tanta gente bonita se arrumando, cada penteado, cada vestido... Seria uma noite realmente muito importante aquela. O tempo foi se passando, a noite se adentrando e Lívia a andar admirada pela cidade com aquelas árvores todas enfeitadas. Como não havia comido nada desde o almoço, começou a sentir sua barriga apertar de fome. Foi aí que se admirou mais ainda com aquele dia, quando, então já tarde da noite, viu tanta gente lhe oferecendo pratos maravilhosos para comer. Tinha camarão, lagosta, chester... tudo coisa que ela nunca nem havia sonhado em comer! E agora estava tudo ali, na frente dela, tinha até mais de uma pessoa oferecendo ao mesmo tempo com a maior generosidade do mundo. Nunca antes havia visto tanta comida e tanta generosidade juntas em sua frente!

Admirada mais ainda com essa generosidade súbita das pessoas, Lívia ficou curiosa para saber o que era aquela festa que mexia com todo mundo. Sentou-se ao lado de um senhor que dormia no banco da praça tentando assim puxar alguma conversa. Teimando em acordá-lo, se inclinou para o lado dele e perguntou:

-- Moço, o senhor sabe que festa é essa que está tendo hoje pra tá tudo assim tão bonito, o povo todo arrumado e tanta gente com a generosidade de lembrar da gente que tava com fome?

E o senhor se endireitando respondeu:

-- Ah minha filha, hoje é noite de natal.
-- Sim, e o que isso quer dizer?
-- O natal é a festa de aniversário do nascimento de Jesus, minha filha!
-- Hã?! Pensei que tinha alguma coisa a ver com o velhinho....

Ricardo Gurgel



Ao som de 'Noite Feliz' - Cantiga de Natal
Degustando Caldo de Feijão
Posted by PicasaImagem: 'Natal'- Autor Desconhecido

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Eloqüência em te amar

Poesia


Mesmo no teu silêncio,
falas profundo em meu coração.
No teu olhar eu me adentro
e encontro o que vem de dentro.

Pois o que vem daí é forte,
capaz de superar a dor e a morte;
bate intenso no teu peito,
toca-me e me pega de jeito.

Sentimento vago cansa se calado;
alimenta-se de discussões
e de cobranças para todo lado.

Amor verdadeiro é diferente:
É capaz de fazer do silêncio
Um momento eloqüente.

Ismael Alexandrino

Ao som de 'O Silêncio' - Zeca Baleiro
Degustando Chá de Hortelã
Posted by PicasaImagem: 'Pôr do sol' - Julio Rafael

sábado, 10 de dezembro de 2005

Chumiguinhas

Crônica


Já era seis da tarde. Eu ouvia aquela vendedora de doces com muita atenção. Ela me dizia que há anos atrás, observava uma criança. A criança, sem piscar, admirava uma formiga e apontava seu dedinho para ela. Como a menininha era muito nova, não pronunciava bem o nome do inseto. Mesmo assim, fez uma observação de que as "chumiguinhas" trabalhavam unidas, e que se as pessoas também fossem assim, certamente o mundo seria melhor.

Ficamos imaginando -- a senhora e eu -- quão sábio era aquele coração. Há dois mil anos atrás, Jesus Cristo dizia "deixa vir a mim os pequeninos, porque deles é o reino dos céus". Creio que existe, basicamente, duas coisas preponderantes no coração das crianças que as fazem distintas dos adultos e, portanto, dignas do reino dos céus. A pureza e a sinceridade do coração dos pequeninos conseguem enxergar coisas que o experiente coração adulto não é capaz. Falta a simplicidade de encarar as situações com pureza e sinceridade.

É fato que vivemos em um mundo perverso, no qual devemos estar sempre atentos às intempéries a que somos sujeitos. É fato que, num mundo de mais de seis bilhões de habitantes, a sobrevivência permeia uma competitividade voraz e desleal. É notável que estamos expostos a uma espoliação rotineira. É marcante a violência que campeia entre o povo, assolando a raça humana. Tudo isso é verídico e deve ser considerado.

Contudo, se espelhássemos na natureza, talvez esse quadro poderia ser mudado. Isaac Newton, pai da física clássica, evidenciou na sua 3ª Lei, a veracidade da Ação X Reação. Basta lembrar que "física", do grego "physis", significa "natural", da "natureza". Baseado nisso, ação e reação na mais é do que um comportamento natural. Não fosse a atuação humana, equilibraria com perfeição. Uma "chumiguinha", vendo que tem pouca força, começa a trabalhar, guardando comida pro verão. A outra, ao lado, vê que também é frágil e que precisa de sobreviver, também faz a mesma coisa. E assim, todas fazendo o seu papel, se ajudam mutuamente, perpetuando a espécie e continuando o ciclo de vida natural.

Julga-se a violência algo inconcebível, mas pede-se vingança. Reclamam do trânsito caótico, mas furam o sinal vermelho. Ficam tristes e desolados com as enchentes e os rios poluídos, mas não são capazes de guardar um papel de bombom no bolso até que se chegue no lixo mais próximo. Quando se vêem com problemas e diante de situações difíceis, recorre-se aos vícios e às drogas, incapazes de enfrentar o problema de frente.

Possivelmente, se nos atentássemos à pureza e sinceridade de um olhar infantil, seriamos capazes de mudar quem está do nosso lado. E este, agindo da mesma forma, também influenciaria positivamente seu próximo,e o outro...e o outro. Talvez assim, seguindo o exemplo das "chumiguinhas", consigamos construir uma sociedade mais igüânime, que colabora entre si e, com isso, um mundo melhor. Imagino.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Imagine' - John Lennon
Degustando Algodão Doce
Posted by PicasaImagem: 'Formigão' - Mariani Malinowski

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

A passarela

Conto


E eu tomei coragem e resolvi aparecer para ele. A noite estava fria e aproveitei para colocar o meu casaco de couro preto, que muito lembrava o que ele tinha me dado. A maquiagem sutil como a gosto dele, o batom com brilho, os cabelos soltos e o meu andar com um salto pequeno que realçava minhas curvas. Diante do espelho do restaurante eu estava pronta. Há dez anos eu não me sentia tão decidida.

Saí do banheiro. Do corredor fiz uma passarela e caprichei no sorriso, mas quando estava no meio do caminho o rosto surpreso dele não refletia nenhum sentimento de afeição. Depois disso cada passo me fraturava a alma, mas o meu sorriso se manteve incólume. Sem duvidar mudei de direção e continuei com os olhos fixos mirando a porta de saída. No carro desfaleci por duas horas entre os vidros escuros. E aquele pranto fora o desfecho de dez anos de espera , preparação e coragem.

Hoje posso falar e sorrir do momento. Não me arrependo de ter arriscado tantos anos da minha vida por um amor que não sei porque não deu certo. Amanhã vai fazer um ano daquele encontro que não houve e eu estarei bem longe daquele restaurante - que abandonei naquela noite - como já estou daquela vida (onze anos de renúncia).

Agora o casaco me esquenta do frio artificial aqui dentro do avião. A minha alma com trezentos e cinco pontos já está bem costurada para agüentar um novo vôo (onde somente o destino é antigo). Boa noite, por favor apertem os cintos, pois já vamos partir.

João Antonio Ribeiro

Ao som de 'Eu te amo' - Chico Buarque
Degustando Café Carioca
Posted by PicasaImagem:'Sem rumo' - Daniel Costa

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

Alma gêmea

Poesia

Verde -- que te quero verde --
Para minha verve poder explorar.
Exaurir meu pranto,
Ressuscitar meu encanto,
Com você namorar.

Vento -- que te quero a tempo --
Para minha vida poder dedicar.
Gastar meu amor, seja como for,
Para você quero me dar.

Dar-me a todo tempo,
Sem tino, sem desalento,
Deixar-me levar pelo vento
Para o seu coração confortar.

Minha menina, como rapina
Roubou meu coração.
Sei que é minha alma gêmea,
-- é minha metade --
É meu quinhão.

Ismael Alexandrino

Ao som de 'Metade' - Adriana Calcanhoto
Degustando Leite Puro Gelado
Posted by PicasaImagem: 'Brincos' - César Coe

segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

Manhã

Conto


Cinco da manhã. Como de costume, Álvaro acorda.

Mais um dia. Da janela, hoje acredito que vá chover por volta das dez horas. Logo se levanta e após tomar banho vai preparar o café. Melancia, manga, iogurte, cuscuz, me esqueci de comprar ovos! Também pudera, acabei a faxina da casa seis e meia da noite, tomei banho, jantei e fui dormir. Eu como cuscuz com carne. O café é degustado devagar e mais lenta ainda é a lavagem dos pratos após. Enxugadas as mãos, vou ver se colocaram o jornal na minha porta. Mais um assassinato e a seleção de vôlei ganha de novo. Alguém poderia pensar que os jogadores são todos assassinos. Que primeira página estúpida e sarcástica. Vende-se apartamento tipo estúdio com sessenta metros quadrados por setenta mil, aceitamos troca. Seria uma boa, pelo menos economizaria tempo na faxina e poderia ler mais. 81 3332 4567. Acho que está muito cedo, deixa-me ler logo esta carta que chegou. Prezado Sr. Álvaro, o serviço de e-mail continua disponível para o senhor fazer o cadastro. Um feliz Natal. As felicitações eu aceito, mas se eles conhecessem um pouco mais do que meu nome, veriam que um e-mail não tem a mínima lógica. E a manhã foi sendo regada com muita música e poucas palavras.

Vou comer lasanha mesmo. Telefone! Alô? Álvaro, sabe quem está falando? Oi Rodrigo. Ainda reconheces minha voz! É o costume do passado. Só liguei para desejar feliz Natal. Para você também. Um abraço, tchau. Acertei que ia chover, mas que Rodrigo ia ligar é querer muito de mim. Foi bom, só assim me lembro de comprar novas luzes de Natal. E a tarde se resumiu à ópera de Carmem, Otelo e alguns cochilos.

E novamente o telefone. É hoje! Alô? Por favor, gostaria de falar com o senhor Álvaro. Não precisa engrossar a voz Marcelo, tudo bom? Álvaro, depois de todo esse tempo você ainda continua surpreendendo. Acho que a surpresa foi maior da sua parte. Feliz natal, meu amigo, sempre penso muito em você. Para você também, Marcelo. Tchau.

Pensar, pensar, pensar... não acredito que as pessoas pensem tanto e não façam nada. A atitude não pensada é ruim, mas acredito que o pensar sem ação seja pior. O mundo todo pensa, e olha como ele está.

E mais algumas ligações aconteceram naquela noite regada por uma taça de vinho e muitas estrelas.

Nove horas, já está tarde e não estou me sentindo bem. Vou dormir. E com as sandálias sem sair do chão e a mão esquerda apoiando na parede do corredor ele caminha.

Oito horas da manhã as luzes continuavam a piscar e colorir a casa. Álvaro, deitado, agora dormia sem suspirar. E naquele dia, e no outro, e no outro não houve mais ligações, até o vizinho perceber algo estranho e chamar o bombeiro, que retirou o corpo solitário, que teve um enterro mais solitário ainda.

João Antonio Ribeiro

Ao som de 'Faust' - Franz Liszt/Filarmônica de Berlim
Degustando Nega Maluca
Posted by PicasaImagem: 'Paisagem' - Antônio Bandeira, 1964

sábado, 3 de dezembro de 2005

A partida

Poesia

Vai, mulher, ... Vai!
Vai e morre.
Vai porque queres.
Morre porque vai.

Antes de ires,
Gasta por completo tua ira,
Joga fora as flores que te dei,
Não cantes mais a canção que te fiz
-- tão singela, tão sincera --;
Apaga os meus rabiscos tolos,
Todos ensaiados nas madrugadas frias
Em gélida solidão de cama.
Abandona os meus versos aguerridos,
Abandona também os de lamento e penúria.
Dá vazão a isto que te apetece !
Gasta teu verbo mordaz
Todo em segunda pessoa
Na sua forma mais que perfeita,
Ou gaste-o na terceira coloquial.
Derrama o fel amargo e putrefato
Desta tua alma sequiosa
Desidratada pelos olhos em dilúvio.
Atira-me os cristais que estão à tua volta
Sem medo de me machucar.
Quebra todos os retratos
-- estáticos, inertes, pré-moldados, previsíveis --
Com as tuas mãos, ou com a cabeça que tens.
Quebra tudo mais quanto puder,
De preferência os sentimentos rudes,
Os instintos mais primitivos,
O orgulho de estimação -- tão oportuno! --,
Mas que corrói teu âmago
E é capaz de te jogar na cama,
Na lama, na lama...
Num poço sem fundo, sem retrocesso.

Quebra-os ... todos!

Depois da balbúrdia desvairada,
Permita-me, por obséquio,
Comprar flores novinhas e cheirosas
E te dá-las ao som de uma nova canção
Dedilhada com as cordas marcadas de saudade
No braço companheiro do meu violão.
Dá-me um lapso de tempo
Para eu fazer rabiscos com mais nexo
Para ensaiar melhor as palavras de cada verso.
Escuta o grito do meu coração,
Percebe dele o desespero
Agonizando em um sangue muito vivo,
Afogando em um sangue muito úmido.
Atenta-te para meus olhos cintilantes
Marejados de dor, de saudade, de amor...
Permita-me que eu ajunte
Cada pedaço de vidro à nossa volta
Cada peça jogada de cristal,
Cada caco de mim que resta no chão.
Ouça, então, meu silêncio constrangido,
Que não te diz nada muito elaborado
Senão aquilo que me arrebata,
Aquilo que me impulsiona
Na eternidade de cada instante.
Ouça-me, abraça-me, sinta-me.

Quero-te ... toda!

Vem, minha mulher, ... vem!
Vem e vive.
Vem porque eu te chamo;
Vive porque eu te amo.


Ismael Alexandrino


Ao som de 'That I could be good' - Alanis Morissette
Degustando Café Solúvel
Posted by PicasaImagem:'Dom quixote-The power of thought' - Salvador Dali

quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

Eu e eu

Poesia



Eu me preocupo com as pessoas
eu não estou nem aí para ninguém!

Eu me preocupo em saber quem é
eu lá quero saber de alguém!

Eu estava querendo uma opinião
eu já fiz , e quem achar ruim...

Eu queria te pedir desculpas
eu quero que ele venha beijar a minha mão!

Eu estou com saudades
eu sei que dependem de mim!

Eu aprendo com todas as idades
eu , se melhorar estraga!

Eu amo você
eu não tenho tempo para insignificâncias!

Eu , você , ele , ela , nós ...

eu , ? , ? , ? , ?

João Antonio Ribeiro

Ao som do Silêncio
Degustando Ar
Posted by PicasaImagem: 'Carlos Drummond de Andrade' - Leo Santana

terça-feira, 29 de novembro de 2005

Suplício

Poesia

Ó dor! O que tu queres,
podes bem me falar?

Tira meu sono, silencia o meu cantar,
Desfaz os sonhos, põe pedras para escalar
Calas minha boca, fazes-me suspirar.
Deixa de ser lacônica!
Criança má, hedônica
Pára de gritar, sinfônica
Voz aguda, grave, harmônica

Ó dor! O que tu queres,
podes bem me mostrar?

Imputa-me o tédio, faz da angústia doença
Sem remédio, descrença
Me joga no abismo, não pensa.
Deixa de ser vil!
Imatura, infantil
Pára de gesticular, pueril
Obscena, teatróloga feminil

Ó dor! Por que não cresces a ponto de me matar?
Afugentas meu semblante, tolhes meu sorriso
Auguras meus planos, futuro que preciso
Enegreces meus olhos, obscureces o paraíso
Deixa de ser mesquinha!
Cobra criada, abelha rainha
Pára de cutucar, largue sua varinha
Mata-me ou me deixa, mas não me definha

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Você não me ensinou a te esquecer' - Caetano Veloso
Degustando Café Preto Amargo
Posted by PicasaImagem: 'Banco' - Elvis Melnisk

sábado, 26 de novembro de 2005

Reencontro

Conto


E o restaurante pareceu-me uma grande cartola e ela a nova surpresa que aparecia agora ao público (quem me dera que a platéia se resumisse a mim). Olhos cansados, embora o brilho permanecesse o mesmo, ou maior estivesse - o que é pior. Os cabelos de um colorido incerto e a pele com uma tenacidade abrandada, encoberta por um luto falso vinha em minha direção. De olhos fechados poderia descrever o vai-e-vem da carne negra em seu caminho. Mas o que mais me chamou a atenção foi o sorriso ( grande demais para o que eu me recordava). E isso me causou estranheza. Sem perceber-me, ela saiu. Meu corpo cansado frustrou meus pensamentos fugidios que a seguiam agora pelas ruas.

Resolvi pedir mais uma cerveja (talvez para fingir que nada havia acontecido). Depois fui para casa onde Rilke me esperava ansioso por causa do jantar. Aquele grande sorriso não saia da minha cabeça. E isso me causava angústia. Por que naquele momento a sós os lábios tão escancarados? Para que tanta exuberância? Para quem àquela janela doce se abrira? E acordei na manhã seguinte com Rilke lambendo meu rosto. Já eram dez horas e ele estava com fome.

Uma semana depois, fui novamente ao restaurante na esperança de reencontrar aquele sorriso agora mais tímido. E dentre vários lábios os dela não estavam lá, mas dentro de mim já me encobriam a face.

E esse ritual de ida e frustrações continuou por várias semanas.

Hoje faz um ano que aquele grande sorriso aqui apareceu, e agora ele me encobre todo. Hoje me arrependo de não tê-la seguido(talvez para pedir perdão e carinho, ou para perguntá-la o porquê daquela feição). Hoje faz onze anos que nós nos separamos por minha vontade e desespero dela.

João Antonio Ribeiro


Ao som de 'Chega de Saudade' - Vinícius de Moraes e Tom Jobim
Degustando Cerveja Preta
Posted by PicasaImagem: 'Casario'- Manoel Martins

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

Espelho do coração

Poesia


Quando te olho, vejo-me sorrindo
Se choras, lágrimas rolam em meu rosto
Quando alegras, não me contenho de felicidade
Se fazes mais um ano, lembro que o amor não tem idade
Quando repousas, eu te contemplo
Se dormes, também estou dormindo
Quando sonhas, nas nuvens brincamos juntos
Se acordas, não demoro para te servir o café
Quando levantas, já estou de pé
Se inspiras, eu expiro
Quando não está perto, eu piro
Se aproximas, eu suspiro.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Olhos no espelho' - João Alexandre
Degustando Chá de Hortelã
Posted by PicasaImagem: 'Menina Diante do Espelho' - Pablo Picasso, 1932

terça-feira, 22 de novembro de 2005

Aos mestres

Crônica de bolso


Como é bom viver perto de homens e mulheres que são os melhores na sua área (para meus olhos críticos pelo menos). Escutar prestando atenção a cada palavra dita, para não ser surpreendido com a falta de entendimento que vem depois do deslize, é uma constante. Que prazer cansativo! Olhar vendo essas pessoas como mestres, que sabem muito mais que você, porém com um contínuo desejo de saber mais. E você, atrás, tem que correr. Que cansaço prazeroso!

Entretanto há um fato: essas pessoas não são como são (mestres) só porque são os melhores na sua área , mas também (e principalmente) por serem homens e mulheres com mentes abertas: todo e qualquer assunto é tema de uma discussão, que visa o aprendizado. E que discussões! Para saber e sentir como são esses debates, basta chegar e dá um mote, que a glosa vem logo depois. E se deliciar... .Um quesito, porém, não pode deixar de ser destacado nessas pessoas: a simplicidade. Sem ela, uma pessoa pode até ser grande, mas nunca bela. E a beleza é inerente nesses mestres.

Escutai-vos, pois eles sempre terão algo a dizer , e o que é melhor , algo pertinente. Admirai-vos, pois o belo na vida, tanto quanto na arte e na natureza, existe para ser admirado. (Não me cabe aqui julgar qual deles é o maior). Cultivai-vos, pois eles são poucos, porém imprescindíveis, porque lutam a vida toda, já dizia Brecht. E por fim, tornai-vos um deles, que as inspirações de outros vão surgir e, assim, mover o mundo.

João Antonio Ribeiro



Ao som de 'Missa em Si menor' - Bach

Degustando Café Vienense
Posted by PicasaImagem: 'Shakespeare' - Tarsila do Amaral

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

"Ubi tu ILA, ibi ego ILO"

Poesia

A poesia abaixo é escrita em Latim e tem como base o livro de Cantares de Salomão e escritos de Caio Fábio.

Inspirado en amada mía, ILA, decidi escribir mi Cantar de los Cantares...

Ah, si me besaras con los besos de tu boca porque mayor en verdad es tu amor, más que el vino!

Tus unguentos tienen olor agradable, tu nombre es como fragante perfume;
¡Llévame a nuestra habitación. ¡Date prisa!

Si tú no lo sabes, ¡oh la más hermosa de las mujeres!, sal tras las huellas del rebaño, y apacienta tus cabritas junto a las cabañas de los pastores. Allí me encontrarás.

Eres más hermosa en tu porte de mujer vigoza que las yeguas libres en las colinas.

Hermosas son tus mejillas entre los adornos, tu cuello, con los collares son pura seducción. Adornos de oro haré para ti, con cuentas de plata. En ellos grabaré con fuego: "Ubi tu ILA, ibi ego ILO".

Cuán hermosa eres?, amada mía, cuán hermosa eres?

Tus ojos son como palomas imaculadas.

Como azucena entre las espinas es mi querida entre las mujeres. Quien las puede comparar?

Llevame a la sala de bailes, y pone sobre mi tu amor como un estandarte para que todos lo vean.

Sustentadme con tortas de pasas, reanimadme con manzanas, porque estoy enferma de amor por ti.

Esté su mano izquierda bajo mi cabeza y su derecha me abraze.

Levántate, amada mía, hermosa mía, y ven conmigo.

Pues mira, ha pasado el invierno, ha cesado la lluvia y se ha ido.

Han aparecido las flores en la tierra; ha llegado el tiempo de la poda, y se oye la voz de la tórtola en nuestra tierra.

La higuera ha madurado sus higos, y las vides en flor han esparcido su fragancia. Levántate amada mía, hermosa mía, y ven conmigo."

Paloma mía, en las grietas de la peña, en lo secreto de la senda escarpada, déjame ver tu semblante, déjame oír tu voz; porque tu voz es dulce, y precioso tu semblante.

Eres Hermosa, querida mia, cúan bella eres! Tus ojos son como los ojos de las palomas que brillan em noche oscura. Tus pelos son perfumados como la primavera encantada. Tus dientes son perfectos y limpios. El perfume de tu boca es dulce, como una mezcla de todos los mejores perfumes.

Tus labios son cual dibujo; tu semblante como la ofrenda de las mejores frutas, por eso me gusta morder y probar con mi lengua.

Tu cuello es perfecto para las joyas. Tus pechos parecen dos cervatillos, dos crías mellizas de gacela que pastan entre azucenas.

Eso te digo, yo tu marido: Antes de que el día despunte y se desvanezcan las sombras, subiré a la montaña de la mirra, a la colina del incienso y desfrutaré.

Toda tú eres bella, amada mía; no hay en ti defecto alguno.

Ven conmigo mujer mía, ven conmigo; mira los rios de mi tierra, oye los cantos nocturnos de las guaribas, quiero despertarte con el canto del Uirapuru.

Cautivaste mi corazón, hermana y novia mía, con una mirada de tus ojos; con una perla de tu collar de amor compraste mi corazón para siempre.

Cuán delicioso es tu amor, mi mujer, mujer mia!

Más agradable que el vino es tu amor. Tu perfume es mejor que cualquier fragancia en el mercado de perfumes.

Tus labios, mujer mia, destilan miel. Miel y leche escondes bajo la lengua y el olor de tus vestidos es como del Opium.

Jardín cerrado eres tú, hermana y mujer mía; sellado manantial!... eres mia.

De ti vienen los perfumes que encantam mi alma.Tus pechos son un huerto de granadas con frutos exquisitos, con flores de nardo y azahar; con toda clase de árbol resinoso, con nardo y azafrán, con cálamo y canela, con mirra y áloe, y con las más finas especias.

Eres fuente de los jardines, manantial de aguas vivas, ¡arroyo más fuerte que él Amazonas!

Viento del norte, despierta! ¡Viento del sur, ven acá! Soplen en mi jardín; dispersen su fragancia. He entrado ya en mi jardín, hermana y novia mía, y en él recojo mirra y bálsamo; allí me sacio de los mejores frutos. Si, he entrado en mi jardín y allí me embriago de vino y leche; estoy saciado y feliz!

Mujer mia, amada mía; preciosa paloma mía, ¡déjame entrar!

Mi cabeza está empapada de rocío; la humedad de la noche corre por mi cabello. Dejame entrar en mi jardin! Ya me he quitado la ropa; ¡cómo volver a vestirme! Ya me he lavado los pies; ¡cómo ensuciarlos de nuevo!

Tú, amada mía, mujer mía, eres bella. Aparta de mí tu mirada, pues tus ojos me pretuban. Tus cabellos bajan por las curvas de tu espalda. Yo estoy hechizado de tu amor! Por eso huyi de ti, pues tuve miedo de perder el control sobre mi propia vida!

Pueden ser sesenta las reinas, ochenta las concubinas e innumerables las vírgenes, pero una sola es mi palomita preciosa, mi inmaculada... Las mujeres la ven y la bendicen; las reinas y las concubinas la alaban pues mi amor es tuyo.

Quién es ésta, admirable como la aurora? ¡Es bella como la luna, radiante como el sol, majestuosa como las estrellas del cielo!

Ella es única, mi amada, mi jardin sellado!

Cúan hermoso es tu caminar en sandalias, oh hija de príncipes! Los movimientos de tu quadril son como la seducción de las olas de un lago de deseo. Tu genitalia es la copa donce no falta bebida; tu vientre es como una porción de dulces deseables, cercado de todos los vinos. Tus pechos? ah son dos almohadas de placer?.con perfume de saputi y de miel. Tú cuello es como una invitación al deslize? tus ojos son como piletas que invitan a que uno se desnude y se ahogue en ti. Tú nariz anuncia tu nobleza y tu inteligencia, y tambien habla de la elegancia de tus deseos. Tú cabeza es altiva; tu cabello como un sueño de verano, un rey esta atrapado en tus trenzas? para siempre!

Cuán bella eres, amor mío, ¡cuán encantadora en tus delicias!

Tu talla se asemeja al talle de la palmera, y tus pechos a sus racimos. Me dije: «Me treparé a la palmera; de sus racimos me adueñaré.» ¡Sean tus pechos como racimos de uvas, tu aliento cual fragancia de manzanas, y como el buen vino tu boca!

Ponme como sello sobre tu corazón, como sello sobre tu brazo, porque fuerte como la muerte es el amor, inexorables como el Seol, los celos; sus destellos, destellos de fuego.

Las muchas aguas no pueden extinguir el amor, ni los ríos lo anegarán; si el hombre diera todos los bienes de su casa por amor, de cierto lo menospreciarian.

"Ubi tu ILA, ibi ego ILO"

Ismael Alexandrino

Ao som de 'Românticos' - Vander Lee
Degustando Chocolate Quente
Posted by PicasaImagem: 'Monalisa' - Leonardo da Vinci, 1503

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

A senhora e a pedra

Conto

... Curta Parada ...
E a senhora, cansada de esperar, sentou na areia. Como se tivesse achado uma pedra preciosa, pegou o seixo e ficou olhando para ele, imóvel. O que se passava na cabeça dessa senhora calejada e tão delineada pelas curvas dos ossos? Talvez ela estivesse com inveja desse ser inanimado, por ele ser tão polido... como podia isso acontecer?... (não sabe o tempo que a água levou para essa pequena pedra ser esculpida. Quem sabe se ela também tivesse pelo menos um pouco mais de intimidade.)

Será que a saudade do marido lhe corrompia? Que sorte esta pedra poder viver por si só, sem de ninguém sentir saudade. Ah, era para cor viva que ela dedicava àqueles olhares fundos e negros que imitavam a sua cor (a sua alma talvez fizesse parte dessa escuridão). E o cansaço de seu membro tão delineado pelas curvas ósseas não acabou com o diálogo: a sua outra mão já a recebia como filha, mas por pouco tempo. A senhora , tomada por um impulso que não se transmitia para a face, arremessou o seixo que não ultrapassou um metro. O que a levou a arremessar com todas as suas forças? Infelizmente não pude perguntá-la, pois o pneu do ônibus foi consertado e seguimos viagem (depois fui refletindo no caminho e acredito que ela lançou a pedra para se libertar, libertar-se do pensar, posto que os meninos deveriam estar com fome em casa e ela precisava levar as palmas que estavam no saco azul ao seu lado).

João Antônio Ribeiro

Ao som de 'Cajuína' - Caetano Veloso
Degustando água
Posted by PicasaImagem: 'Cena Árabe' - Dario Mecatti

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Gota d'água

Poesia

O teu silêncio debruçado
Na janela deste quarto à meia-luz
Pesa em meus cansados ombros
Uma angústia tão única e tão tua
Que não me compete entender - te
Muito menos ajudar - te.

Se eu o fizesse por amor,
Admito que seria cena de filme.
Mas meu amor terminou hoje
Logo depois do almoço --
-- às treze e trinta e nove.

Se eu o fizesse por pena,
Tão somente trasladaria teu fardo
Para um lugar frágil e incapaz
De suportar tamanha vaidade.

Se eu o fizesse por amizade,
Estaria quebrando meu orgulho
Que estimo desde a tenra idade.

Por consideração,... nem pensar!
Estou petrificado, pálido e gélido.

Em tempo, demito-me de ti.


Ismael Alexandrino


Ao som de 'Gota D'água' - Chico Buarque

Degustando Cappucinu de Chocolate com Leite Condensado
Posted by PicasaImagem: 'A Janela' - Paula Rego, 1997

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Castelos Abandonados

Conto


Resolvi um dia andar por esses campos desconhecidos. Foi uma experiência insólita. Eu via o sol nascer e depois se esconder por detrás de imensas paredes. Foi assim por longo tempo. Aquelas paredes pareciam instransponíveis. Pareciam cidadelas medievais, davam medo. Nunca quis me aproximar muito por receio não sei bem de quê. Acho que tenho medo do desconhecido. Pareciam-me proibidas, mas fui me aproximando e um dia resolvi entrar. Eram castelos abandonados.

Lá dentro estavam velhas lembranças minhas. Tudo que eu quis esquecer durante toda minha vida estava lá.

Fui construindo ao longo de toda a vida muralhas ao redor de cada desencanto. Tinha compartimentos separados por ordem de assunto e data. Tinha um quarto velho e empoeirado onde ficavam as lembranças de um antigo amor não correspondido que um dia eu expulsara de minha mente. As lembranças estavam congeladas em forma de quadros pintados em cores pastéis e também em forma de estátuas. Do mesmo jeito como eu as deixei algum dia, num passado irrecuperável. Eu me sentei para ver o rosto daquela jovem ainda sorrindo para mim. A tela estava bem gasta, mas o sorriso ainda traduzia alegria e esperança. Tirei um pouco da poeira com a mão e senti aquele rosto ainda mais perto de mim. Meu coração pareceu inchar dentro do peito. Senti minha mente navegar gostosamente por outras ocasiões que coincidentemente também estavam retratadas naquelas pinturas. Era uma pinacoteca imensa. Meu coração esfriou e involuntariamente suspirei.

O único brilho que ainda vi naquela imagem foi quando fluíram as lágrimas. Aí fechei os olhos e aquelas imagens se transformaram em um filme.

Sebastian Picasso


Ao som de 'Dias Iguais' - Luiza Possi
Degustando Chá de Hortelã
Posted by Picasa Imagem: 'Quitandinha', Petrópolis/RJ - Alex Monteiro