Café Alexandrino - O lado aromático da vida

terça-feira, 29 de novembro de 2005

Suplício

Poesia

Ó dor! O que tu queres,
podes bem me falar?

Tira meu sono, silencia o meu cantar,
Desfaz os sonhos, põe pedras para escalar
Calas minha boca, fazes-me suspirar.
Deixa de ser lacônica!
Criança má, hedônica
Pára de gritar, sinfônica
Voz aguda, grave, harmônica

Ó dor! O que tu queres,
podes bem me mostrar?

Imputa-me o tédio, faz da angústia doença
Sem remédio, descrença
Me joga no abismo, não pensa.
Deixa de ser vil!
Imatura, infantil
Pára de gesticular, pueril
Obscena, teatróloga feminil

Ó dor! Por que não cresces a ponto de me matar?
Afugentas meu semblante, tolhes meu sorriso
Auguras meus planos, futuro que preciso
Enegreces meus olhos, obscureces o paraíso
Deixa de ser mesquinha!
Cobra criada, abelha rainha
Pára de cutucar, largue sua varinha
Mata-me ou me deixa, mas não me definha

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Você não me ensinou a te esquecer' - Caetano Veloso
Degustando Café Preto Amargo
Posted by PicasaImagem: 'Banco' - Elvis Melnisk

sábado, 26 de novembro de 2005

Reencontro

Conto


E o restaurante pareceu-me uma grande cartola e ela a nova surpresa que aparecia agora ao público (quem me dera que a platéia se resumisse a mim). Olhos cansados, embora o brilho permanecesse o mesmo, ou maior estivesse - o que é pior. Os cabelos de um colorido incerto e a pele com uma tenacidade abrandada, encoberta por um luto falso vinha em minha direção. De olhos fechados poderia descrever o vai-e-vem da carne negra em seu caminho. Mas o que mais me chamou a atenção foi o sorriso ( grande demais para o que eu me recordava). E isso me causou estranheza. Sem perceber-me, ela saiu. Meu corpo cansado frustrou meus pensamentos fugidios que a seguiam agora pelas ruas.

Resolvi pedir mais uma cerveja (talvez para fingir que nada havia acontecido). Depois fui para casa onde Rilke me esperava ansioso por causa do jantar. Aquele grande sorriso não saia da minha cabeça. E isso me causava angústia. Por que naquele momento a sós os lábios tão escancarados? Para que tanta exuberância? Para quem àquela janela doce se abrira? E acordei na manhã seguinte com Rilke lambendo meu rosto. Já eram dez horas e ele estava com fome.

Uma semana depois, fui novamente ao restaurante na esperança de reencontrar aquele sorriso agora mais tímido. E dentre vários lábios os dela não estavam lá, mas dentro de mim já me encobriam a face.

E esse ritual de ida e frustrações continuou por várias semanas.

Hoje faz um ano que aquele grande sorriso aqui apareceu, e agora ele me encobre todo. Hoje me arrependo de não tê-la seguido(talvez para pedir perdão e carinho, ou para perguntá-la o porquê daquela feição). Hoje faz onze anos que nós nos separamos por minha vontade e desespero dela.

João Antonio Ribeiro


Ao som de 'Chega de Saudade' - Vinícius de Moraes e Tom Jobim
Degustando Cerveja Preta
Posted by PicasaImagem: 'Casario'- Manoel Martins

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

Espelho do coração

Poesia


Quando te olho, vejo-me sorrindo
Se choras, lágrimas rolam em meu rosto
Quando alegras, não me contenho de felicidade
Se fazes mais um ano, lembro que o amor não tem idade
Quando repousas, eu te contemplo
Se dormes, também estou dormindo
Quando sonhas, nas nuvens brincamos juntos
Se acordas, não demoro para te servir o café
Quando levantas, já estou de pé
Se inspiras, eu expiro
Quando não está perto, eu piro
Se aproximas, eu suspiro.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Olhos no espelho' - João Alexandre
Degustando Chá de Hortelã
Posted by PicasaImagem: 'Menina Diante do Espelho' - Pablo Picasso, 1932

terça-feira, 22 de novembro de 2005

Aos mestres

Crônica de bolso


Como é bom viver perto de homens e mulheres que são os melhores na sua área (para meus olhos críticos pelo menos). Escutar prestando atenção a cada palavra dita, para não ser surpreendido com a falta de entendimento que vem depois do deslize, é uma constante. Que prazer cansativo! Olhar vendo essas pessoas como mestres, que sabem muito mais que você, porém com um contínuo desejo de saber mais. E você, atrás, tem que correr. Que cansaço prazeroso!

Entretanto há um fato: essas pessoas não são como são (mestres) só porque são os melhores na sua área , mas também (e principalmente) por serem homens e mulheres com mentes abertas: todo e qualquer assunto é tema de uma discussão, que visa o aprendizado. E que discussões! Para saber e sentir como são esses debates, basta chegar e dá um mote, que a glosa vem logo depois. E se deliciar... .Um quesito, porém, não pode deixar de ser destacado nessas pessoas: a simplicidade. Sem ela, uma pessoa pode até ser grande, mas nunca bela. E a beleza é inerente nesses mestres.

Escutai-vos, pois eles sempre terão algo a dizer , e o que é melhor , algo pertinente. Admirai-vos, pois o belo na vida, tanto quanto na arte e na natureza, existe para ser admirado. (Não me cabe aqui julgar qual deles é o maior). Cultivai-vos, pois eles são poucos, porém imprescindíveis, porque lutam a vida toda, já dizia Brecht. E por fim, tornai-vos um deles, que as inspirações de outros vão surgir e, assim, mover o mundo.

João Antonio Ribeiro



Ao som de 'Missa em Si menor' - Bach

Degustando Café Vienense
Posted by PicasaImagem: 'Shakespeare' - Tarsila do Amaral

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

"Ubi tu ILA, ibi ego ILO"

Poesia

A poesia abaixo é escrita em Latim e tem como base o livro de Cantares de Salomão e escritos de Caio Fábio.

Inspirado en amada mía, ILA, decidi escribir mi Cantar de los Cantares...

Ah, si me besaras con los besos de tu boca porque mayor en verdad es tu amor, más que el vino!

Tus unguentos tienen olor agradable, tu nombre es como fragante perfume;
¡Llévame a nuestra habitación. ¡Date prisa!

Si tú no lo sabes, ¡oh la más hermosa de las mujeres!, sal tras las huellas del rebaño, y apacienta tus cabritas junto a las cabañas de los pastores. Allí me encontrarás.

Eres más hermosa en tu porte de mujer vigoza que las yeguas libres en las colinas.

Hermosas son tus mejillas entre los adornos, tu cuello, con los collares son pura seducción. Adornos de oro haré para ti, con cuentas de plata. En ellos grabaré con fuego: "Ubi tu ILA, ibi ego ILO".

Cuán hermosa eres?, amada mía, cuán hermosa eres?

Tus ojos son como palomas imaculadas.

Como azucena entre las espinas es mi querida entre las mujeres. Quien las puede comparar?

Llevame a la sala de bailes, y pone sobre mi tu amor como un estandarte para que todos lo vean.

Sustentadme con tortas de pasas, reanimadme con manzanas, porque estoy enferma de amor por ti.

Esté su mano izquierda bajo mi cabeza y su derecha me abraze.

Levántate, amada mía, hermosa mía, y ven conmigo.

Pues mira, ha pasado el invierno, ha cesado la lluvia y se ha ido.

Han aparecido las flores en la tierra; ha llegado el tiempo de la poda, y se oye la voz de la tórtola en nuestra tierra.

La higuera ha madurado sus higos, y las vides en flor han esparcido su fragancia. Levántate amada mía, hermosa mía, y ven conmigo."

Paloma mía, en las grietas de la peña, en lo secreto de la senda escarpada, déjame ver tu semblante, déjame oír tu voz; porque tu voz es dulce, y precioso tu semblante.

Eres Hermosa, querida mia, cúan bella eres! Tus ojos son como los ojos de las palomas que brillan em noche oscura. Tus pelos son perfumados como la primavera encantada. Tus dientes son perfectos y limpios. El perfume de tu boca es dulce, como una mezcla de todos los mejores perfumes.

Tus labios son cual dibujo; tu semblante como la ofrenda de las mejores frutas, por eso me gusta morder y probar con mi lengua.

Tu cuello es perfecto para las joyas. Tus pechos parecen dos cervatillos, dos crías mellizas de gacela que pastan entre azucenas.

Eso te digo, yo tu marido: Antes de que el día despunte y se desvanezcan las sombras, subiré a la montaña de la mirra, a la colina del incienso y desfrutaré.

Toda tú eres bella, amada mía; no hay en ti defecto alguno.

Ven conmigo mujer mía, ven conmigo; mira los rios de mi tierra, oye los cantos nocturnos de las guaribas, quiero despertarte con el canto del Uirapuru.

Cautivaste mi corazón, hermana y novia mía, con una mirada de tus ojos; con una perla de tu collar de amor compraste mi corazón para siempre.

Cuán delicioso es tu amor, mi mujer, mujer mia!

Más agradable que el vino es tu amor. Tu perfume es mejor que cualquier fragancia en el mercado de perfumes.

Tus labios, mujer mia, destilan miel. Miel y leche escondes bajo la lengua y el olor de tus vestidos es como del Opium.

Jardín cerrado eres tú, hermana y mujer mía; sellado manantial!... eres mia.

De ti vienen los perfumes que encantam mi alma.Tus pechos son un huerto de granadas con frutos exquisitos, con flores de nardo y azahar; con toda clase de árbol resinoso, con nardo y azafrán, con cálamo y canela, con mirra y áloe, y con las más finas especias.

Eres fuente de los jardines, manantial de aguas vivas, ¡arroyo más fuerte que él Amazonas!

Viento del norte, despierta! ¡Viento del sur, ven acá! Soplen en mi jardín; dispersen su fragancia. He entrado ya en mi jardín, hermana y novia mía, y en él recojo mirra y bálsamo; allí me sacio de los mejores frutos. Si, he entrado en mi jardín y allí me embriago de vino y leche; estoy saciado y feliz!

Mujer mia, amada mía; preciosa paloma mía, ¡déjame entrar!

Mi cabeza está empapada de rocío; la humedad de la noche corre por mi cabello. Dejame entrar en mi jardin! Ya me he quitado la ropa; ¡cómo volver a vestirme! Ya me he lavado los pies; ¡cómo ensuciarlos de nuevo!

Tú, amada mía, mujer mía, eres bella. Aparta de mí tu mirada, pues tus ojos me pretuban. Tus cabellos bajan por las curvas de tu espalda. Yo estoy hechizado de tu amor! Por eso huyi de ti, pues tuve miedo de perder el control sobre mi propia vida!

Pueden ser sesenta las reinas, ochenta las concubinas e innumerables las vírgenes, pero una sola es mi palomita preciosa, mi inmaculada... Las mujeres la ven y la bendicen; las reinas y las concubinas la alaban pues mi amor es tuyo.

Quién es ésta, admirable como la aurora? ¡Es bella como la luna, radiante como el sol, majestuosa como las estrellas del cielo!

Ella es única, mi amada, mi jardin sellado!

Cúan hermoso es tu caminar en sandalias, oh hija de príncipes! Los movimientos de tu quadril son como la seducción de las olas de un lago de deseo. Tu genitalia es la copa donce no falta bebida; tu vientre es como una porción de dulces deseables, cercado de todos los vinos. Tus pechos? ah son dos almohadas de placer?.con perfume de saputi y de miel. Tú cuello es como una invitación al deslize? tus ojos son como piletas que invitan a que uno se desnude y se ahogue en ti. Tú nariz anuncia tu nobleza y tu inteligencia, y tambien habla de la elegancia de tus deseos. Tú cabeza es altiva; tu cabello como un sueño de verano, un rey esta atrapado en tus trenzas? para siempre!

Cuán bella eres, amor mío, ¡cuán encantadora en tus delicias!

Tu talla se asemeja al talle de la palmera, y tus pechos a sus racimos. Me dije: «Me treparé a la palmera; de sus racimos me adueñaré.» ¡Sean tus pechos como racimos de uvas, tu aliento cual fragancia de manzanas, y como el buen vino tu boca!

Ponme como sello sobre tu corazón, como sello sobre tu brazo, porque fuerte como la muerte es el amor, inexorables como el Seol, los celos; sus destellos, destellos de fuego.

Las muchas aguas no pueden extinguir el amor, ni los ríos lo anegarán; si el hombre diera todos los bienes de su casa por amor, de cierto lo menospreciarian.

"Ubi tu ILA, ibi ego ILO"

Ismael Alexandrino

Ao som de 'Românticos' - Vander Lee
Degustando Chocolate Quente
Posted by PicasaImagem: 'Monalisa' - Leonardo da Vinci, 1503

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

A senhora e a pedra

Conto

... Curta Parada ...
E a senhora, cansada de esperar, sentou na areia. Como se tivesse achado uma pedra preciosa, pegou o seixo e ficou olhando para ele, imóvel. O que se passava na cabeça dessa senhora calejada e tão delineada pelas curvas dos ossos? Talvez ela estivesse com inveja desse ser inanimado, por ele ser tão polido... como podia isso acontecer?... (não sabe o tempo que a água levou para essa pequena pedra ser esculpida. Quem sabe se ela também tivesse pelo menos um pouco mais de intimidade.)

Será que a saudade do marido lhe corrompia? Que sorte esta pedra poder viver por si só, sem de ninguém sentir saudade. Ah, era para cor viva que ela dedicava àqueles olhares fundos e negros que imitavam a sua cor (a sua alma talvez fizesse parte dessa escuridão). E o cansaço de seu membro tão delineado pelas curvas ósseas não acabou com o diálogo: a sua outra mão já a recebia como filha, mas por pouco tempo. A senhora , tomada por um impulso que não se transmitia para a face, arremessou o seixo que não ultrapassou um metro. O que a levou a arremessar com todas as suas forças? Infelizmente não pude perguntá-la, pois o pneu do ônibus foi consertado e seguimos viagem (depois fui refletindo no caminho e acredito que ela lançou a pedra para se libertar, libertar-se do pensar, posto que os meninos deveriam estar com fome em casa e ela precisava levar as palmas que estavam no saco azul ao seu lado).

João Antônio Ribeiro

Ao som de 'Cajuína' - Caetano Veloso
Degustando água
Posted by PicasaImagem: 'Cena Árabe' - Dario Mecatti

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Gota d'água

Poesia

O teu silêncio debruçado
Na janela deste quarto à meia-luz
Pesa em meus cansados ombros
Uma angústia tão única e tão tua
Que não me compete entender - te
Muito menos ajudar - te.

Se eu o fizesse por amor,
Admito que seria cena de filme.
Mas meu amor terminou hoje
Logo depois do almoço --
-- às treze e trinta e nove.

Se eu o fizesse por pena,
Tão somente trasladaria teu fardo
Para um lugar frágil e incapaz
De suportar tamanha vaidade.

Se eu o fizesse por amizade,
Estaria quebrando meu orgulho
Que estimo desde a tenra idade.

Por consideração,... nem pensar!
Estou petrificado, pálido e gélido.

Em tempo, demito-me de ti.


Ismael Alexandrino


Ao som de 'Gota D'água' - Chico Buarque

Degustando Cappucinu de Chocolate com Leite Condensado
Posted by PicasaImagem: 'A Janela' - Paula Rego, 1997

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Castelos Abandonados

Conto


Resolvi um dia andar por esses campos desconhecidos. Foi uma experiência insólita. Eu via o sol nascer e depois se esconder por detrás de imensas paredes. Foi assim por longo tempo. Aquelas paredes pareciam instransponíveis. Pareciam cidadelas medievais, davam medo. Nunca quis me aproximar muito por receio não sei bem de quê. Acho que tenho medo do desconhecido. Pareciam-me proibidas, mas fui me aproximando e um dia resolvi entrar. Eram castelos abandonados.

Lá dentro estavam velhas lembranças minhas. Tudo que eu quis esquecer durante toda minha vida estava lá.

Fui construindo ao longo de toda a vida muralhas ao redor de cada desencanto. Tinha compartimentos separados por ordem de assunto e data. Tinha um quarto velho e empoeirado onde ficavam as lembranças de um antigo amor não correspondido que um dia eu expulsara de minha mente. As lembranças estavam congeladas em forma de quadros pintados em cores pastéis e também em forma de estátuas. Do mesmo jeito como eu as deixei algum dia, num passado irrecuperável. Eu me sentei para ver o rosto daquela jovem ainda sorrindo para mim. A tela estava bem gasta, mas o sorriso ainda traduzia alegria e esperança. Tirei um pouco da poeira com a mão e senti aquele rosto ainda mais perto de mim. Meu coração pareceu inchar dentro do peito. Senti minha mente navegar gostosamente por outras ocasiões que coincidentemente também estavam retratadas naquelas pinturas. Era uma pinacoteca imensa. Meu coração esfriou e involuntariamente suspirei.

O único brilho que ainda vi naquela imagem foi quando fluíram as lágrimas. Aí fechei os olhos e aquelas imagens se transformaram em um filme.

Sebastian Picasso


Ao som de 'Dias Iguais' - Luiza Possi
Degustando Chá de Hortelã
Posted by Picasa Imagem: 'Quitandinha', Petrópolis/RJ - Alex Monteiro

Tempo

Conto



E foi logo após o suspiro de Sérgio que Rayca bateu a porta e seguiu em direção ao carro. Ele, como de costume, assim permaneceu com os olhos vagantes buscando nas estrelas talvez uma nova morada.

Ao entrar no carro, Rayca quietou-se e não precisou esforço para o corpo tomar posse de si e desencadear soluços e lágrimas que ela tentava conter. Estava indefesa. E foi esse sentimento que a fez fugir dali e talvez da vida. Se ele pensa que o silêncio vai me tirar do sério está muito enganado.

Enquanto o trânsito e Rayca se tornavam um turbilhão só , a respiração preguiçosa agora era acompanhada pela Missa de Bach no apartamento. Os olhos fechados e a luz tênue eram a
oposição de uma cidade-grande vista pela varanda. E numa das encruzilhadas estava Rayca. Assustada e exausta, se perdera pouco a pouco diante dos próprios olhos. Flashes de anúncios passavam como que se tentando formular uma hipótese do que realmente acontecia. Ela, afogada em suas próprias palavras nem de longe lembrava àquela mulher seca e ríspida de ontem e sempre.

Descalço, só se ouvia o ranger da madeira cada vez mais perto da cama desarrumada e fria.

Rayca de súbito percebeu que o carro a levara ao passado. A casa vazia e desbotada de muro baixo verde de musgo a fez abrir a porta do jipe. Passo a passo as pernas a levavam atrasando o percurso do pensamento , mas quando chegou ao portão percebeu que já não tinha as chaves. Quanto tempo.

O corpo quente agora esquentava o colchão que cedia ao peso da carne.

Que abandono absurdo. Rayca, de joelhos, peço pelo menos um fim, qualquer que seja.

Ao se levantar com os olhos-sangue ela retorna ao carro na contramão dos sonhos .

Sérgio dorme.

O carro no piloto automático revela a angústia pelos tempos idos.

O Apartamento é escuridão e ausência.

Rayca chega e não perturba o ambiente. Sem espaço na cama, ela pega o travesseiro e se deita no sofá. Sorri , quando a dor te torturar...

João Antonio Ribeiro

Ao som de 'Noites Cariocas' - Jacob do Bandolim
Degustando Café Mocha
Posted by PicasaImagem: 'Casa' - José Leonilson

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Poetinha ao avesso

Poesia


De repente do pranto fez-se o riso
Eufórico e colorido como o arco-íris
E dos azuis arregalados da sua íris
E dos abraços apertados o amor preciso.

De repente do vendaval fez-se a calmaria
Que dos olhos brotou de quem ama
E do amor fez-se o sentimento que ficaria
E deste a eterna união que se proclama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se alegre o amado-amante
E unido aos demais viajantes.

Fez-se do amigo mais distante o irmão
Fez-se da vida uma aventura contagiante
De repente, alegrou-se o coração.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Canção da América' - Milton Nascimento
Degustando Cappuccinu de Chocolate

Posted by PicasaImagem: O Encontro - Paulo Ferreira, 1935

A "pausa" na música da vida

Ensaio



Enquanto relia alguns conceitos musicais numa peça de Paganini, me detive em uma pausa. Na pausa não há música, mas ela ajuda a fazer a música. A vida é como música: há um compositor -- Deus -- e os diversos intérpretes -- o homem.

As claves, sejam elas de dó, sol ou fá, com suas linhas e espaços, mostram o caminho a ser seguido, a ser tocado. Algumas notas são mais demoradas, mais lentas. Outras têm o passo bem mais rápido. Ainda há aquelas que parece que se está em um feriado de domingo e, sendo assim, se escolhe o passo e gasta-se o tempo que quiser. A esta, denomina-se "fermata". Tem também o que dita a corrida -- os compassos --, bem como o entusiasmo da música, qual seja, é ditado pelos sinais que indicam expressão. Existem inúmeros símbolos e todos eles traduzem um significado específico que o bom músico entende e segue com perícia.

Na melodia da nossa vida a música é interrompida aqui e ali por "pausas". E nós, sem refletirmos, pensamos muitas vezes que a melodia terminou. Mas como é que o maestro lê a pausa? Ele continua a marcar o compasso com a mesma precisão e toma a nota seguinte com firmeza, como se não tivesse interrupção alguma. Deus segue um plano, uma partitura ao escrever a música de nossa vida. Por vezes uma música agitada, outras tantas, algo bastante largo e grazioso. As pausas, no entanto, sempre estão presentes para serem passadas ou emitidas sem que atrapalhe a melodia ou altere o tom. Mas sim que aprimore e enriqueça a canção.

Ao olharmos para cima, conforme a intimidade, Deus mesmo marcará o compasso para nós. Não nos esqueçamos, no entanto, de que "ela ajuda a fazer a música". Com os olhos Nele, vamos ferir a próxima nota com toda a clareza sem murmurarmos tristemente que "na pausa não há música".

Compor a música da nossa vida é geralmente um processo bastante lento, trabalhoso e gradual. Com paciência, Deus trabalha para nos ensinar. E Ele espera muito tempo até que aprendamos a lição. A pausa em si não dura muito, mas apenas o tempo suficiente e necessário pra que se renove o fôlego, harmonize a melodia e continue a canção. A pausa, então, apenas serve pra continuar a música.

Talvez devamos olhar melhor à nossa volta -- as notas tocadas e as que ainda estão por tocar -- e viver a vida, seguir tocando a melodia. Também, torna-se sábio parar um pouquinho e, mesmo que não se entenda a princípio a pausa, aceita-la. Pois o Compositor da nossa música é O da melhor estirpe e de maior grandeza e Ele com certeza quer que nossa música exale amor para que seja amada. Com certeza quer que tal música nos faça sonhar com dias melhores. E que, ao cantá-la, se possa sorrir e ser feliz...muito mais feliz.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Além do Horizonte' - Roberto Carlos

Degustando Café Quente com Leite Frio
Posted by PicasaImagem: The Old Guitarist - Pablo Picasso

domingo, 13 de novembro de 2005

Quando eu fui buscar você

Conto



Não sei se você percebia, mas você voava alto. Eu gritava seu nome e nada de me escutar. Chamava, chamava e você só queria saber de voar. Parecia uma fada. De todas as formas pensei no que fazer. Pensei em subir numa asa de borboleta, mas talvez ela não agüentasse o peso da minha dor. Pensei em subir nas asas de um avião. Foi quando me veio que ele andava rápido demais e poderíamos nos desencontrar. Vaguei nos recôncavos das minhas idéias, tentando procurar um meio que eu pudesse te buscar.

Entrei num corredor branco em que as pessoas me olhavam assustadas. As paredes brancas pareciam refletir a face daquela gente que ficava por ali. O ar frio parecia ter resfriado o coração do pessoal e eles me olhavam sem entender o que eu fora fazer. Uma senhora de olhar singelo veio correndo ao meu encontro chorando e implorando que eu a ajudasse a encontrar você. Eu a tranqüilizei e pedi que ela acalmasse, pois eu viera para te buscar.

Sentei junto àquela senhora e folheamos algumas páginas de um velho diário para saber qual era o seu plano. Numa daquelas linhas eu tive a luz. Você me lembrara da minha condição de anjo e, como tal, eu também poderia voar. Mais que depressa tirei minha vestimenta e abri minhas asas. Voltei correndo por aquele corredor e quando cheguei de fora, te vi bem longe entre as nuvens. Você sorria bastante, enquanto se lambuzava com as nuvens de algodão doce.

Sem demora alcei vôo rumo ao céu. Era minha primeira missão como anjo. O vento batia forte em meu rosto, mas minhas asas fortes batiam firmes em sua direção. Assim que cruzei os morros de uma baía, já pude te ver melhor. Lembro bem como foi bonito seu sorriso e quão doce o seu olhar quando me viu aproximando. Nunca vou esquecer como foi apertado aquele abraço. Estava ansiosa para me mostrar coisas bonitas num jardim que d'antes já havia me descrito. Desta vez também tinha alguém sentado num banquinho, mas não conseguimos vê-lo. Então você pegou na minha mão puxando-me para brincar com suas peraltices naquela imensidão de ruas de ouro. Era realmente muito bonito e reinava uma paz indescritível naquele lugar. Mas eu não podia demorar ali, pois havia ido te buscar. Muita gente confiara em mim e o olhar daquela senhora clamava-me para que eu te encontrasse e a levasse novamente para ela.

Passeamos um pouquinho e seus olhos brilhavam tanto que deixava todo aquele céu azul. Foi aí que descobri porque o céu era daquela cor. Olhamos para baixo e só havia nuvens carregadas; tão carregadas que não víamos a cor do mar. Num vôo angelical sobrevoamos a tempestade. Você ainda me lembrou daquele dia que havíamos dançando por ali a Valsa dos Anjos. Olhei bem dentro dos seus olhos e repeti que estava ali porque te amava muito e havia prometido que nunca ia te abandonar. Naquele instante você, convicta, repetiu que nosso amor para sempre faria sentido.

Quando passávamos perto do sol sentimos um calor profundo que aqueceu sem igual o nosso corpo e o nosso coração. Então te chamei para descermos rápido a fim de aquecer o coração frio daqueles que ficaram me esperando. Como estávamos bastante suados, combinamos que também mergulharíamos no mar a fim de nos refrescarmos.

Abraçamos firme e descemos em queda livre. Assim que passamos por aquela tempestade e que seus olhos contemplaram o mar, já pude notar que ele ficara azul novamente. Em poucos minutos chegamos e aquecemos o coração daquelas pessoas. Foi emocionante ver o sorriso delas. Arrepiei.

Então as deixamos todas ali felizes se abraçando, sorrindo de corações aquecidos e fomos nos refrescar no mar. No momento que você mergulhou, as ondas de imediato se acalmaram como que te reverenciando. Ficamos submersos alguns instantes e quando voltamos à tona, você estava um pouco diferente e me beijou demoradamente. Foi nesse dia que descobri o que era o amor e que, em se tratando de amor, era possível um anjo amar uma sereia.

Ismael Alexandrino



Ao som de 'Segredos' - Frejat
Degustando Café Orgânico
Posted by PicasaImagem: Parque Ushuaia - Marcelo Melo

sexta-feira, 11 de novembro de 2005

Aos teus verdes olhos

Poesia



Sob a luz
Dos olhos teus
Florescerá toda relva
E toda flor.

Tuas cintilantes esmeraldas
Hão de ver o mais belo jardim
Que hei de plantar em teu peito
Todo cultivado com as cores do amor.

E, sendo assim, desse jeito,
Quero que sintas um cheiro-cheiroso
Nem muito suave, nem muito doce,
Suficientemente marcante,
Extremamente gostoso.

Hás de ser inebriada sempre!
Quero que excites os sentidos...todos!
Mas quero, principalmente,
Que vejas Tudo
Um verde-colorido.

E se, porventura, enegrecer-te os dias,
Perderes estes olhos
E não tiveres mais esta mágica visão,
Sob a luz dos olhos teus
Ante a luz dos olhos meus
Amar-te-ei
De forma a fazer cócegas
No teu coração.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Dona' - Roupa Nova
Degustando Café Vienense
Posted by PicasaImagem: Olhos da musa do poema

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

O vestido

Conto



Vermelho. Não totalmente vermelho, mas com traços brancos, azuis e alguns complementos rendados. O tamanho é variado, mas ele nasceu para ser longo como uma noite de São João. Vou adiantando que ele foi usado como programado: no dia certo, no tamanho certo para a pessoa certa, e depois fora guardado para servir de lembrança, ou quem sabe de quebra-galho. Essa segunda opção se tornou a mais propícia há alguns anos (a dona não mais se lembrava da época certa daquele vestido dobrado). O improviso foi feito.

Uma nova dona, com tamanho diferente, largura diferente, idade diferente e bem mais encabulada. E o vestido fez sua parte (claro que com alguns retoques da antiga dona, mas o suficiente para dançar sem preocupação). Ela estava linda. A festa com suas cores, comidas e a música que não parava. Isso era o mote para nova dona e seu vestido vermelho girar pelo arraial.

Lembrando outras ocasiões, tentei fazer com que Ela e o vestido seguissem os meus passos na dança, mas, mostrando vida própria, Eles tomavam outro rumo, e o descompasso era evidente aos meus olhos e das pessoas em volta.

Reclamei, fiquei chateado sem os outros perceberem e sentei. Ela continuava a rodar. E vinham comentários aos meus ouvidos de que Ela era linda, que o vestido ficou ótimo e que eu estava de parabéns... e mesmo eu concordando e sorrindo, interiormente eu pedia para não dizer isso a mim, mas a Ela e seu vestido. Eles tinham vida própria, e eu não era responsável por aquela aparição. Continuei admirando, enquanto o trio não cansava de tocar sucessos...

O amanhecer anunciara o fim daquela parceria.

Hoje é dia de festa, e o vestido continua dobrado. Não existe uma nova dona que o desamasse e, mesmo se a tivesse, com certeza ele teimaria em caber nas medidas, no passo, nos comentários. Hoje, percebo que o vestido não tem tanta vida assim como eu imaginara naquela noite. Hoje, aquela dona está distante, e o vestido não serve mais de quebra-galho. Hoje, ele somente está guardado para o que primeiramente foi proposto : servir de lembrança.

João Antonio Ribeiro

Ao som de 'Que nem jiló' - Luis Gonzaga
Degustando Café com Leite com Pamonha
Posted by PicasaImagem: Vilarejo - Fulvio Pennacchi

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Meretriz

Poesia

Solte o cabelo.
Solte-o para mim.
Balance-o para lá e para cá
Com aquele olhar penetrante.
Mas não fique aí, à meia-distância.
Tire-me dessa constância letárgica
Que me acomete,
Conseqüente tão somente
Deste mundo arredio
Que outorga sofrimento
A quem ousa amar demais.

Solte lentamente
As alças deste rodado,
Deste longo vestido preto.
Deixe-o roçar em teu corpo esguio
Até o limite do chão.
Dispa desta vida de desgraça
De lançar-se à sorte toda noite,
De se dar na madrugada ao próximo que passa.
Dispa por inteiro dessa carapaça negra
Que oblitera minha visão
E deixe que eu veja tua alma nua.

Amarra-me contigo num só laço
Que, como num abraço, se faz o todo,
Sem se desfazer de si mesmo.
Tatue-me em teu corpo
Para quando tu olhares no espelho
Veja-me tão somente;
Que tua saciedade seja consumida,
Mas se alimente de mim e de mais ninguém.
A partir de então, tua reconquistada candura,
Seja o selo de tua liberdade
E o fim de minha constante amargura.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Cose Della Vita' - Eros Ramazzotti & Tina Turner
Degustando Cappuccinu de Chocolate com Avelã e Cidreira
Posted by PicasaImagem: 'Meretriz' - Edvard Münch, 1906

terça-feira, 8 de novembro de 2005

É tempo de renascer

Crônica

Por esses dias estive pensando no dia em que eu nasci. Numa madruga marcante de uma terça-feira estava lá eu chutando a barriga da mamãe, espremendo e causando-lhe dores horríveis. Fora mais ou menos na época de meados do ano. E numa manhã ensolarada de um 26 de julho, às 8:30, eu rebentei. Rebentei, mas não pensem que explodi. Quem explodiu de alegria foi o papai que fotografava cada movimento. Confesso que fiquei irado quando me vi na foto virado de cabeça pra baixo e levando palmadas no bumbum. Na época papai me explicou que era pra que eu respirasse.

Por longas datas fiquei imaginando porque eu precisa apanhar para respirar, porque eu precisava passar por aquele sofrimento logo no início da vida. Sendo a vida tão boa, ficava matutando porque aquele momento tão delicado de trazer um ser à vida trazia consigo gestos de extrema dor. A mamãe me disse depois que a dor que ela sentiu era indescritível, mas que valeu a pena. A dor que senti me fez chorar muito e, hoje crescido e respirando bem, também concordo que valeu a pena. Papai vendo tudo aquilo me disse que seu coração doía, mas que foi bom para ele enxergar algumas coisas.

Os anos se passaram. Cismaram que eu era "engraçadinho". Também, pudera! Um ser de fralda, todo mijado, sem dentes e que ainda assim insistia em sorrir, só poderia ser visto como "engraçadinho". Um dia resolvi calçar as botas do papai. Gostaram tanto que tiraram foto. Até que chegou o dia em que mamãe e eu fomos comprar uma lancheira do Didi, Dedé, Muçum e Zacarias para eu ir para escola. Lacei a alça no pescoço e fui todo importante e sorridente. Disseram-me que eu ia aprender a ler com a tia. Aprendi, de fato. Mas como foi doloroso diminuir as horas do lado do meu carrinho força bruta vermelho e da minha bola de couro número quatro. Doeu-me todo esse processo, mas me foi benéfico. Admito.

Depois de alguns poucos anos de estudo, aprendi que as verduras e legumes faziam bem à saúde. Tia Lúcia que me disse. Cheguei em casa, contei para o papai e ele se aproveitou disso. Encheu uma mão de chiclete 'Ploc de tuti-frutti'-- daqueles bem duro que todo mundo já comeu -- e na outra alguns jilós bem verdinhos e brilhantes. A cada jiló que ele cortasse e eu comesse, teria o prazer de mastigar aquela borracha rosa docinha. Eu f inúmeras caretas, mas engolia satisfeito com o prêmio que viria depois. Era terrível aquele gosto amargo, mas sorria com o docinho do 'Ploc', que logo acabava. Nessa época eu já tinha dentes. Alguns caindo, é verdade, mas adorava mostrar meu sorriso desigual.

De tanto comer jiló amargo fui crescendo. Meu chute na bola número quatro já saia potente. Das equações algébricas no quadro negro-verde, já extraia a raiz com facilidade. Pena que toda reunião de pais, chamavam minha mãe em um canto. Não havia queixa das notas, que até o oitavo ano nunca foram menores que as máximas, mas diziam que eu era muito "peralta". Nesses dias, eu sempre dava um jeito de dormir mais cedo, antes que ela chegasse. Dormia de um lado apenas. Do outro ouvia ela dizer ao papai que no outro dia teria uma "conversa séria comigo" (eu até encolhia na cama). Depois de muito falatório das peraltices, me parabenizava pelas notas. Foi assim por várias e várias vezes.

Corri muito, empinei muita pipa, joguei peão. Assisti Tunder Cat ("hoooooooou!"), corrida maluca e inspetor buginganga ("hihihihi"). Fui artilheiro do time, chorei porque perdi um campeonato de natação numa categoria acima da minha, alegrei-me várias vezes em outras conquistas. Em todos os momentos, no entanto, percebi que não existiram vitórias sem lutas. Não houve alegria sem tristezas. Não houve prazer sem o sofrimento. Não houve o sorriso sem o lamento. Começamos a vida sendo espremido, depois somos virados de cabeça para baixo num mundo novo. Então apanhamos, choramos, sofremos. Tudo com a justificativa de que é para se respirar e poder viver bem.

Diante de tudo isso, vem-me à tona quando o Grande Arquiteto do Universo diz na Enciclopédia Sagrada que para tudo há um tempo. Tempo de plantar e tempo de colher, tempo de chorar e tempo de sorrir, tempo de odiar e tempo pra amar, tempo de guerra e tempo de paz....e nesse embalo salta-me aos olhos que as derrotas e os sofrimentos nada mais são do que acontecimentos para nos fazer crescer, aprendermos e valorizarmos a vitória. Que, depois da tempestade, o mar se acalma e vem a bonança.

Noutro tempo, fora tempo de nascer. Depois de crescido e de tanta dor, creio que seja tempo de renascer.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'É preciso saber viver' - Titãs
Degustando Café com Canela
Posted by PicasaImagem: 'Renascer' - Maria Thereza Neves

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

OSTAUF

Conto


Estou cansado desse dom de agradar. Pensei, no começo, que o meu reconhecimento fosse devido ao grande esforço que despendi na juventude. Horas em conversas com livros para no final lápis e papel na mão. Cada novo personagem me tinha como aprendiz (hoje vejo que na maioria das vezes eles eram inúteis para meu propósito).O estudo me levará tão perto da perfeição que sentirei seu aroma doce, pensava ao deitar no retângulo chato. Esse era meu maior ouvinte, pois minha família sempre recebia minha obra silenciada e pronta. Está lindo! Tão bom quanto o outro! De onde vem tanta inspiração?! Eu teimava em dizer que era transpiração quando resolvi provar mostrando o meu primeiro poema datado de quando tinha dezoito anos e o meu último do auge de minha maturidade de três décadas. Foi nesse dia que desconfiei do óbvio (Os dois eram idênticos em qualidade como todos os outros). A genialidade me passou pela cabeça. Logo eu que tanto me esforço? Gênio! Decidi abandonar a poesia pela metade.

O conto sempre me cativou e foi sobre esse fascínio que escrevi meu primeiro conto intitulado "Canto Cativo". Por causa dele fui escolhido para a antologia regional depois de um mês de abandono da poesia. A minha nova paixão não agüentou os cinco prêmios do segundo filho, que se chamava "A fábrica de vidro".

Essas duas frustrações foram responsáveis por uma semana de confinamento num estúdio do outro lado da cidade onde resolvi pela primeira vez me aventurar nas melodias da gaita enferrujada de meu pai. De onde não se saía mais som, surgiu o CD instrumental do ano. Duzentas mil cópias vendidas e muita recusa de minha parte para turnês e aparições em público.
A música expulsei pela janela. (naquele momento vazio, não cheguei a cogitar a idéia de dançar. Sou tímido e quero continuar admirando Barishinikov.)


Com o dinheiro do CD comprei um apartamento num bairro afastado e depositei o resto na conta de minha mãe.

Hoje sou pintor. Não sinto mais necessidade de sair de casa (a comida me chega todo dia pela manhã junto com meus pincéis e tintas). As janelas vivem fechadas, mas aqui dentro meus quadros de paisagens e figuras humanas substituem o mundo lá fora. Vivo uma vida silenciosa e sem cheiro, embora meus olhos não reclamem das pessoas e flores antes nunca vistas e admiradas.

A minha mão e meu corpo estão exaustos (a minha mente exige muito). Já não quero mais compreender Fausto. Estou cansado de não decepcionar. Estou cansado de não viver.... Um único tiro na têmpora foi suficiente.

João Antonio Ribeiro

Ao som de 'Um homem chamado Alfredo' - Vinícius de Moraes
Degustando um Café Preto com poucos cristais de açúcar
Posted by PicasaImagem: 'Retrato de Homem' - Pablo Picasso