Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sexta-feira, 14 de abril de 2006

Compreensão

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Monólogo



Eu sei das tuas tensões,
dos teus vazios e da tua inquietude.
Eu sei da luta que tens travado à procura de Paz.
Sei também das tuas dificuldades para alcançá-la.
Sei das tuas quedas, dos teus propósitos não cumpridos,
das tuas vacilações e dos teus desânimos.

Eu te compreendo...

Imagino o quanto tens tentado para resolver as tuas preocupações
profissionais, familiares,
afetivas, financeiras e sociais.
Imagino que o mundo, de vez em quando,
parece-te um grande peso que
te sentes obrigado a carregar.
E tantas vezes, sem medir esforços.
Eu conheço as tuas dúvidas,
as dúvidas da natureza humana.
Percebo como te sentes pequeno
quando teus sonho acalentados vão por terra,

quando tuas expectativas não são correspondidas.
E essas inseguranças com o amanhã?
E aquela inquietação atroz em não saberes
se amanhã as pessoas que hoje te rodeiam ainda estarão contigo?

De não saberes se reconhecerão o teu trabalho,
se reconhecerão o teu esforço.
E, por tudo isto, sofres, e te sentes como um barco sozinho num mar imenso e agitado.
E não ignoro que, muitas vezes,
sentes uma profunda carência de amor.
Quantas vezes pensaste em resolver definitivamente
os teus conflitos no trabalho ou em casa.

E nem sempre encontraste a receptividade esperada
ou não tiveste força para encaminhar a tua proposta.

Eu sei o quanto te dói os teus limites humanos e
o quanto às vezes te parece difícil
uma harmonia íntima.
E não poucas vezes,
a descrença toma conta do teu coração.
Eu te compreendo...

Compreendo até tuas mágoas,
a tristeza pelo que te fizeram, a tristeza pela incompreensão que te dispensaram,
pelas ingratidões, pelas ofensas,
pela palavras rudes que recebeste.
Compreendo até as tuas saudades e lembranças.
Saudade daqueles que se afastaram de ti,
saudade dos teus tempos felizes,
saudade daquilo que não volta nunca mais...

E os teus medos?
Medo de perderes o que possuis,
medo de não seres bom para aqueles que te cercam,
medo de não agradares devidamente às pessoas,

medo de não dares conta,
medo de que descubram o teu íntimo,
medo de que alguém descubra as tuas verdades e as tuas mentiras,
medo de não conseguires realizar o que planejaste,
medo de expressares os teus sentimentos,

medo de que te interpretem mal.
Eu compreendo esses e todos os outros medos que tens dentro de ti.

Sou capaz de entender também os teus remorsos,
as faltas que cometeste,

o sentimento de culpa pelos pequenos ou

grandes erros que praticaste na tua vida.
E sei que, por causa de tudo isso,
às vezes te encontras num
profundo sentimento de solidão.
É quando as coisas perdem a cor,
perdem o gosto e te vês envolto
numa fina camada de indiferença pela vida.
Refiro-me àquela tua sensação de isolamento,
como se o mundo inteiro fosse indiferente às
tuas necessidades e ao teu cansaço.
E nesse estado, és envolvido pelo tédio e cada ação ou obrigação
exige de ti um grande esforço.

Sei até das tuas sensações de estares acorrentado, preso;
preso às normas, aos padrões estabelecidos,

às rotineiras obrigações:
"Eu gostaria de...
mas eu tenho que trabalhar,
tenho que ajudar,
tenho que cuidar de,
tenho que resolver,
tenho que esperar,
tenho que!...".
Eu te compreendendo...

Compreendo os teus sacrifícios.
E a quantas coisas tens renunciado,
de quantos anseios tens aberto mão!...
E sempre acham que é pouco...
Pouca coisa tens feito por ti e tua vida,
quase toda ela, tem sido afinal dedicada a satisfazer outras pessoas.
Sei que, nas tuas horas mais amargas, a não conformidade e
a revolta afloram em teu coração.
Revolta com a injustiça do mundo, revolta com a fome,
as guerras, a competição entre os homens,
com a loucura dos que detêm o poder, com a falsidade de muitos,
com a saúde da família, com a repressão social e com a desonestidade.

Por tudo isso, carregas um grau excessivo de tensões,
de angústia e de ansiedade.

Sonhas com uma vida melhor,
mais calma, mais significativa.
Sei também que tens belos planos para o amanhã.
Sei que queres apenas um pouco de segurança,
seja financeira ou emocional, e sei que lutas por ela.

Mas, mesmo assim, tuas tensões continuam presentes.
E tu percebes estas tensões nas tuas insônias ou no sono excessivo,
na ausência de fome ou na fome excessiva,
na ausência de desejo ou
no desejo excessivo,
na vontade de sair de casa cedo e não querer marcar hora pra voltar.

O fato é que carregas e acumulas tensões sobre tensões:
tensões no trabalho, tensões na família,
nas exigências e autoritarismos de alguns,
nas condições inadequadas de salário e na inexistência de motivação,
nos ambientes tóxicos dos hospitais,
na inveja dos colegas, no que dizem por trás.
Tensões na família, nas dependências devoradoras dos que habitam a mesma casa;
nos conflitos e brigas constantes, onde todos querem ter razão;
no desrespeito à tua individualidade,
no desrespeito à tua autonomia,
no controle e cobrança das tuas ações.

Eu te compreendo, e te compreendo mesmo.

Eu te Compreendo, mas discordo.

Tu és o único responsável por todos
estes sentimentos.
A vida te foi dada de graça e existem, em ti,
remédios para todos os teus males.
Se, no entanto, preferes a autocomiseração
ao invés de mobilizares as tuas energias interiores,
então nada posso te oferecer.

Se preferes sonhar com um mundo perfeito, sem máculas,
ao invés de te defrontares com os limites de um mundo falho e humano,
não posso dividir sua carga.

Se és demasiadamente cartesiano, imaleável,
não posso demovê-lo e ajudá-lo.

Se preferes lamentar o teu passado e encontrar nele desculpas;
se optastes por tentar controlar o futuro,
-- o que jamais controlarás com todas as suas incertezas --;

se resolveste responsabilizar as pessoas que te rodeiam
pela tua incompetência em tratar com os aspectos negativos delas,
em nada posso te ajudar.

Se trocaste o auto apoio e o apoio mútuo
pelo apoio e reconhecimento do teu ambiente apenas,
então em nada posso ampará-lo.

Se queres ter razão em tudo que pensas;
se queres obter piedade pelo que sentes;
se queres a aprovação integral em tudo que fazes;
se escolhestes abrir mão de tua própria vida,
para comprares o reconhecimento dos outros,

-- através de renúncias e sacrifícios --
em nada posso te auxiliar.
Se entendeste mal o silogismo:
"Amar ao próximo como a si mesmo",
esquecendo-te da premissa maior de AMAR A SI MESMO,
não posso de ajudar.

Se não tens um mínimo de coragem para
estar com teus próprios sentimentos,
sejam agradáveis ou dolorosos;
se não tens um mínimo de humildade para te perdoares pelas tuas imperfeições
e reconhecer-te como humano;

se desejas impressionar os outros e
angariar a simpatia para teus sofrimentos;
se não sabes pedir ajuda e aprender
com os que sabem mais do que tu;
se preferes sonhar, ao invés de sonhar e viver o hoje,
ignorando que a vida é feita de altos e baixos,
nada posso te oferecer.

Se achas que pelo teu desespero as coisas acontecerão magicamente;
se usas a imperfeição do mundo para justificar
as tuas próprias imperfeições;
se queres ser onipotente,
quando de fato és simplesmente humano;
se preferes proteção à tua própria liberdade;
se interiorizaste em ti desejos torturadores;
se deixaste imprimirem-se em tua mente
venenosas ordens de:
"Apressa-te!",
"Não erres nunca!",
"Agrade sempre!";
se escolheste atender às expectativas de todas as pessoas;
se és incapaz de dar um Não quando necessário,
se és incapaz de aceitar um Sim quando carece,
em nada posso te ajudar.

Se pensas ser possível controlar o que os outros pensam de ti;
se pensas ser possível controlar o que
os outros sentem a teu respeito;
se pensas ser possível controlar o que os outros fazem;
se queres acreditar que gera segurança fora de ti,
que podes seguir o caminho sozinho...

Eu te Compreendo mas,
em nome do verdadeiro Amor,
jamais poderia apoiar-te!

Se recusas buscar no âmago do teu ser
respostas para os teus descaminhos,

se dás pouca importância a teus sussurros interiores
e dos que estão intimamente ligados;
se esqueceste a unidade intrínseca dos opostos em nossa vida terrena;

se preferes o que parece mais fácil e abandonaste a paciência para o caminho;
se fechaste teus ouvidos ao chamado de retorno ou ao clamor de um querido;
se perdeste a confiança a ponto de não poderes entregar tua vida
à vontade onipotente de Deus;

se não quiseste ver a Luz que vem do Leste;
se não consegues encontrar no íntimo das coisas
aquele ponto seguro de equilíbrio
no meio de todas as tormentas e vicissitudes;

se não aceitas a tua vocação de viajante
com todos os imprevistos e acidentes da jornada;

se não queres usar o tempo, o erro, a queda, os obstáculos
como teus aliados de crescimento,
realmente nada posso fazer por ti.

Se aspiras obter proteção quando o que precisas é Liberdade;
se não descobriste que a verdadeira Liberdade
e a autêntica segurança são interiores,
interiores seus e dos que te querem bem;

se não sabes transformar a frase
"Eu tenho que..."
na frase
"Eu quero!" ou ?Permito!?;
se queres que o fantasma do passado
continue a fechar teus olhos para a infinidade do teu aqui e agora;

se queres deixar que o fantasma do futuro
te coloque em posição de luta com o que ainda não aconteceu
e, provavelmente, não chegará a acontecer;

se optaste por tratar o âmago e a ti mesmo como a um inimigo;
se te falta capacidade para ver a ti mesmo
como alguém que merece da tua própria parte e dos que te querem bem

os maiores cuidados e a maior ternura;
se não te tratas como sendo a
semente germinada por Deus;
se desejas usar teus belos planos de mudar,
de crescer, de realizar,
como instrumentos de auto-tortura;
se achas que é amor o apego que
cultivas pelos teus parentes e amigos;
se queres ignorar, em nome da seriedade e da responsabilidade,
a criança brincalhona que
habita em ti;
se alimentas a vergonha de te enternecer diante de uma flor
ou de um por de sol,
ou aceitar auxílio de um ser mais jovem;

se através da lamentação recusas a vida como dádiva e como graça divina,
nada posso fazer.

Mas, se apesar de todo o sono, queres despertar;
se apesar de todo o cansaço, queres caminhar;
se apesar de todo o medo, queres tentar;
se apesar de toda angústia, queres ter paz;
se apesar de toda acomodação e descrença,
queres mudar,
reflita e deleite no analisar.

Aparta do caminho das tuas dificuldades a negatividade
e óptica pessimista dos pensamentos.

São eles que te levam para as dores das lembranças do passado
e para a inquietação do futuro.

São esses pensamentos que te afastam da experiência de contato com teu próprio corpo,
com o do próximo,
com o teu presente, com o teu aqui e agora
e, portanto, distanciando-te de teu próprio coração.

Tens presentes agora as tuas emoções?
Tens presente agora o fluxo da tua respiração?
Tens presente agora o pulso e a batida de um bom entendedor do coração?
Tens agora a consciência do teu próprio corpo?
Este é o passo primordial.
Teu corpo é concreto, real, presente,
e é nele que o sofrimento deságua,
é nele que cada célula, racionalmente, faz sofrer a emoção
e é
a partir dele que se inicia a caminhada para a alegria,
é partir dele que se extingue o tormento, acaba o desalento, cura-se a dor.

Somente através dele desfaz-se a angústia e caminha-se ao retorno da paz.
Jamais resolverás os teus problemas
somente pensando neles.

Começa do mais próximo! Começa pelo corpo!
Através dele chegarás ao teu centro, ao teu vazio,
àquele lugar onde a semente germina.

Através da sua consciência
galgarás caminhos jamais vistos,
entrarás em contato com os teus sentimentos e o de outrem,
perceberás o mundo tal como é e agirás de acordo com a naturalidade da vida.

Assume o teu corpo e os teus sentimentos!
-- por mais dolorosos que sejam -- ;
assume e observa-os...observa-os e deixe-se ajudar.
Não tentes mudar nada, sê apenas a tua dor.
Presta atenção, não negues a tua dor.
Não precisa fingir estar alegre se estás triste,
Não precisa fingir coragem se estás com medo,
Não precisa fingir amor se estás com ódio,
Não precisa fingir paz se estás angustiado,
Nada disso não.
Permita-me, pegue na minha mão.

Não lutes contra teus sentimentos,
fica do teu próprio lado, deixa a dor acontecer,
como deixas acontecer os bons momentos.

Pára, para que as coisas sejam como são.
Entra nos teus sentimentos sem os julgar,
não fujas deles, não os evites,
não queira resolvê-los escapando deles - depois terás de te encontrar com eles novamente,

é apenas um adiamento, uma postergação sem fundamento, uma prorrogação.

Torna-te presente, por mais que te doa.
Tenhas certeza que algo de mui belo acontecerá.
Assim como a noite veio, ela também se irá
e então testemunharás o nascer do dia,
pois à noite o sol escurece até a meia-noite e,
a partir daí, começa um novo dia.
Sentirás brotar, de dentro de ti,
uma força que desconhecias e
te sentirás renovado na esperança e
a vida entrando em ti.
Entenderás, como perito do coração,
que a célula -- a semente -- morre mesmo, totalmente,

antes de novamente germinar e que aí floresce a vida.
Então, poderei dizer-te que
Eu te Compreendo e que, assim,
Poderei te ajudar.

E verás com muita alegria que, justamente agora,
já não precisas tanto do meu apoio, ou de separar o trigo do joio,
pois o foste buscar dentro de ti e o
encontraste dentro da tua própria dor!
Agora percebes a causa interior...
Trazes a semente da vida dentro de si.

Causas internas são primárias,
As externas reflexos de um conjunto secundário.
Bem percebes que existe a possibilidade de uma transformação...
Você consegue!
Basta querer, deixar o amor contagiar

e abrir seu coração.


Ismael Alexandrino. Petrópolis, julho de 2004.


Ao som do Silêncio
Degustando Ar
Imagem: Construídas no meu pensamento

quinta-feira, 13 de abril de 2006

Madame Feiúra

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Conto

Madame Feiúra era bem menos que um corpo desafortunado, era ela mesma um objeto de desprazer. Sua voz soava como ríspidos trovões, seu riso enrigelava quase que a própria alma dos ouvintes. Habitava em um esconderijo em algum lugar sob as construções do centro velho da cidade, entre ratos e esgotos, Madame Feiúra traça planos audaciosos para disseminar seu abraço enfeiurante. Por onde passava liberava doses generosas de sua virtude e quem fosse tocado por ela recebia celulite, caspa, seborréia, rugas, estrias, encrespamento ou queda dos cabelos, mau hálito, cáries, etc. Nada podia detê-la.

E para piorar a situação das feias e feios a heroína dessa história, a ex-modelo aposentada e loiríssima Nanda Haken, nomeada pela prefeita, que, aliás, já tem grau de feiúra nível "B+" vive por aí espalhando florzinhas de erva-doce, que ela primeiro beija, dá um sorriso e em seguida joga para cima, na esperança de que as florzinhas espantem a feiúra.

Mas Madame Feiúra era imbatível quando se tratava de espalhar feiúra. A prefeita até fez convênio com clinicas de estética, salões de beleza e clinicas de cirurgia plástica para contornar a situação, mas não conseguiu. A Secretaria da Beleza mandou distribuir gratuitamente os cremes da Avon, mas também foi perda de tempo pois o poder dos cremes é incompatível com a maldade de Madame Feiúra.

De seu esconderijo sob os prédios decadentes e perto dos esgotos doentios ela não descansava, espreitava todo passante, analisava, urdia, esquadrinhava cada rosto e projetava neles sua maldade, sua peçonha. A feiúra como a conhecemos hoje é fruto do projeto dessa mulher que, por falta completa de dotes visuais resolveu combater toda a humanidade para se libertar dos grilhões que a cativam por décadas seguidas.

A prefeita, dona de um patrimônio feiurístico respeitável, está criando uma associação de pesquisa para combater a celulite. Acredita-se que Madame Feiúra está por detrás de mais de 85% dos casos de surgimento desse mau. Os pesquisadores serão incumbidos de criar um filtro ultra-protetor para blindar as mais sujeitas a essa modalidade de enfeiuramento. O Dr. Krauss Foker, PhD pelo Real College of Cabrobó, no condado de Canabis, afirmou que não aprendeu a fazer milagres, mas tem um projeto de criar uma resina reparadora, que funcionaria como funilaria de carro. Mas ele acha que enquanto Madame Feiúra estiver solta o jeito é se conformar.

A prefeita colocou o departamento jurídico da prefeitura para se mexer e encontrar uma maneira de condenar Madame Feiúra, mas nossa legislação não se opõe ao alastramento da feiúra, embora por falta de legislação específica as pessoas feias estão sendo cada vez mais discriminadas. Nesse caso a prefeita tem um interesse pessoal em solucionar esse assunto. Em certos casos, como o dela, tratamentos estéticos mantêm os efeitos da maldade de MF afastados por algum tempo, mas custa caro e o problema se torna cíclico.

Feiúra não é crime, mas se as autoridades não se mobilizarem a feiúra vai tomar conta da nossa cidade.

Sílvio Sebastião


Ao som de 'Balada de Madame Frigidaire' - Belchior
Degustando Chocolate Hersheys ao Leite
Imagem: 'Mulher Desconhecida' - Romero Glasner

sexta-feira, 7 de abril de 2006

Você, minha semântica

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Poesia

Obsoleto, diz-me o dicionário,
De se cair em desuso,
Ser antiquado, arcaico.

Disseram-me um dia
Meu amor ser assim
E aquilo sorriu dentro de mim.

Quanto ao desuso,
Posso hipertrofiá-lo fácil;
É só exercitá-lo.

Nada melhor para fazê-lo
Que usar um músculo
Que não se cansa -- meu coração.

Antiquado seria
Se ninguém mais o usasse.
Contudo, alguém me faz ser alguém.

Arcaico, não sei porquê,
Faz-me lembrar dos árcades,
E estes, cantavam o amor.

Num silogismo que não é falso,
Sinto-me à vontade
Para questionar a rigidez semântica.

Podem me achar hilário,
Sonhador, ufano,
Visionário.

Mas , ou amor é mesmo bobo
e sem explicação, ou o dicionário
é cego, não entende de emoção.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Pareço um menino' - Fábio Júnior
Degustando Sorvete de Creme com Banana
Imagem: 'Rosa' - D. Manfrenatti

domingo, 2 de abril de 2006

Doutor Três Horas

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Crônica

Era sábado pela manhã e as linhas telefônicas nas casas dos formandos
estavam congestionadas. Meninas com salão de estética e beleza marcados, rapazes nadando logo de manhã para evitar o "stress", a companhia responsável pela formatura e baile acertando os últimos detalhes no auditório da Universidade e no Salão Nobre. Todos estavam ansiosos, preocupados, assustados, cheios de expectativas.

Carros iam e vinham da portaria das faculdades.
O pessoal da decoração dava os últimos toques na arrumação da mesa do Corpo Docente, a empresa de som ligava cabos enormes em todos os pontos do auditório, a iluminação colocava as últimas lâmpadas que faltavam, a floricultura acertava os corredores por onde as moças e os rapazes iriam descer e o outro por onde iriam subir. As camareiras davam os últimos retoques nas lindas togas de formatura, os fotógrafos montavam o estúdio móvel na porta do Salão Nobre, a cantina precavia-se de muitos salgadinhos e refrigerantes, enfim, tudo corria contra o tempo, contra o relógio.

Três da tarde. A cerimônia iria começar às 4h, impreterivelmente. O Prof. Dr. Astrogésilo Pessoa Couto, grande celebridade e Reitor da Universidade, não se dava ao luxo de começar um minuto atrasado. Dizia-se que acertava o seu relógio pelo Big-Ben de Londres, até que inventaram o tal "relógio atômico", que ele fez questão de instalar no seu computador. Assim, acontecesse o que acontecesse, às 4 horas a cerimônia iria começar.

Muita gente rica chegando. O estacionamento da faculdade mais parecia um desfile de moda e revenda de automóveis importados: BMW, HONDA, DAEWOO, AUDI etc. Até FERRARI e JAGUAR apareceram! Madames muito bem vestidas estavam presentes. Havia gente da TV, cujos filhos estariam se formando. Mas tinha também um bom grupo de gente simples, humilde, lutadora, que também tinha filhos se formando ali. Seus trajes demonstravam que haviamalugado no "Black Tie" mais próximo do bairro. Não tinham familiaridade com a roupa, com os saltos, com as gravatas, com os colares. Até ficavam um tanto desconcertadas, pois queriam fazer bonito e não envergonhar os filhos.

Quatro horas. Como já dissemos, a empresa responsável pela cerimônia
deu início ao evento. Algo em torno de 700 pessoas presentes. Também, pudera: 89 formandos, 35 em Letras, 12 em Pedagogia, 30 em Direito e 12 em Engenharia de Informática. Uma grande festa. Lugares contados, reservados para duas ou três pessoas de cada formando, e o restante disputado palmo a palmo pelos presentes do lado de fora ou em pé nos arredores. Havia um telão para que todos acompanhassem do lado de fora.

Primeiramente a entrada do Reitor. Palmas efusivas. Então a mesa diretora e, por fim, o corpo docente, palmas afetuosas.

Apresentação das funções de cada um e tudo o que, de praxe, se costuma fazer numa cerimônia de formatura e colação de grau. Cantaram o Hino Nacional Brasileiro com o tradicional CD da Banda da Polícia Militar do Estado de São Paulo, gravação épica e universal para o Brasil. As palavras do Paraninfo, do Patrono da Turma, enfim, tudo o que se costuma haver nessas páginas indeléveis na vida de quem se forma.

No momento da entrada, as torcidas no meio do auditório. Alguns estavam organizados, com línguas-de-sogra e cornetinhas (reprimidas pelo Reitor tão logo descobrira). Outros, mais discretos, levaram faixas, onde se lia: "SONINHA, VALEU O ESFORÇO ? PARABÉNS, DOS SEUS PAIS QUE LHE AMAM"; "AÍ, MARCÃO... VALEU, SEU BABACA! SEUS AMIGOS";"CARLINHOS, PARABÉNS! TE AMO! SUA NOIVA".

Cada um se emocionava do seu jeito. Umas garotas choravam. Outras coravam. Os rapazes erguiam as mãos como se fosse um gol do seu time. Outros faziam o "V" da vitória, e um a um foram chegando com suas togas bem alinhadas e majestosas.

Chegada a hora de passar a palavra ao orador das turmas (combinaram ter um só orador, pelo tempo despendido na cerimônia e pela proximidade do horário do baile, que se seguiria dentro de uma hora), o Julinho, ou melhor, Dr. Júlio Lacerda Loyola Anastácio (nome de advogado desde nascença), foi aclamado, quase levado nos braços dos formandos, que estavam do lado direito do auditório, que tinha formato de teatro.

Sua prédica havia sido impressa para todos acompanharem. Os formandos sugeriram o que o Julinho teria que falar. Estava tudo previamente combinado.

"Ilustríssimo Senhor Doutor Professor Astrogésilo Pessoa Couto, digníssimo Reitor de nossa egrégia Universidade, Senhor Professor Carlos Marques Lara, digníssimo pró-reitor da área de humanas, etc... etc..." Num outro trecho as tradicionais palavras: "Foram árduas as nossas batalhas: cansados do labor diurno, cá chegávamos, com fome, tanto do pão quanto do saber, e éramos fartos pelos nossos valorosos Mestres, que tudo davam de si... etc".

Tudo ia muito bem. Até que Julinho se engasgou, ao dizer uma palavra que estava além do texto: "Agora, Senhor Reitor e senhores formandos, preciso dizer algo pessoal..." Os formandos gelaram.

- "Ele vai fazer besteira".
- "Julinho, cala a boca, termina logo".
- "Ih, cara, sujou. Ele vai embolar tudo".
- "Sabia que no final ele iria melar".

Mesmo conhecendo a cara de desaprovação da turma, Julinho continuou, branco, pálido, engasgado, mas firme, dizendo: - "Senhor Reitor, Corpo Docente, Formandos, Familiares e Amigos: Preciso confessar algo, para fazer justiça e, ao mesmo tempo, reconhecer o que é certo. Todas as coisas aqui foram muito importantes: aulas, colegas, materiais didáticos, a seriedade de nossa secular instituição, tudo. Mas há algo que está faltando no meu texto, e não lerei o que vou dizer, porque o que tenho pra falar vem das letras escritas a ferro, dentro da minha alma. Devo este dia inesquecível e histórico às 3 da manhã de cada dia desses 5 anos.

- "Três da manhã?", pensaram os formandos. "Esse cara bebeu. Ah, Julinho, para de enrolar e desce logo... Ah, se te pego na saída..."

- "Nunca desfrutei de amizade com o meu pai. Na verdade sempre o desprezei. Tanto é assim que ele não está aqui, entre os meus convidados, porque não pode se locomover e eu não fiz o menor esforço para trazê-lo. Aqui estão minha mãe e irmã, mas não meu pai. E ele é responsável pelas três da manhã. Durante 5 anos eu acordei várias vezes no meio da madrugada, e, não raras vezes, às 3h da manhã. Meu pai, que empregou quase todo o seu parco salário no meu curso, mesmo sendo por mim ignorado, entrava no meu quarto, com hercúleo esforço, às vezes caía, mas sempre levantava, e orava a Deus. Sim, ele me apresentava a Deus. Tenho marcas no meu cobertor que não foram feitas por doces ou refrescos que derrubei, nem pontas de cigarro que deixei acesas na minha cama. São as lágrimas do meu pai, que pedia a Deus para fazer-me feliz, fazer-me íntegro, para guardar-me de acidentes, para proteger-me de bandidos, para abrir o meu entendimento na compreensão das matérias, para abrir-me oportunidades de trabalho na área. Ele chorava, pedia, dizia a Deus para que tocasse no meu coração e fizesse de mim um homem e um cristão.

Mas, Senhor Reitor, não foi isso o que mais me tocou. O que marcou a minha vida, e é a razão desta homenagem, era a frase com a qual ele sempre se emocionava e chorava copiosamente junto a mim. Ele dizia: 'Deus, como eu amo ao meu filho, fruto de mim mesmo! Deus, como eu o admiro! Deus, como eu o quero bem! Deus, faça o que quiser comigo, mas abençoe o meu filho, porque, depois de Ti, ele é a razão do meu viver! E dá-me o privilégio de que um dia ele me ouça, que ele me ame também!'

Júlio chorava. O Reitor tossia, para disfarçar a emoção, os formandos estavam com a cabeça baixa, pois sabiam que o Júlio tinha feito a coisa certa e estavam envergonhados de terem desaprovado sua atitude no início.

O auditório se derretia. E, num ápice de dor e amor, Júlio gritou:

- "Meu pai, como eu queria te dizer EU TE AMO!"

De repente, a porta do corredor central se abre subitamente, e uma cadeira de rodas entra, guiada por uma enfermeira, e o pai de Júlio entra, magrinho, cabelos grisalhos, rosto cansado, voz baixa, mas grita com toda a força do seu ser:

- "Eu sei que você me ama, filho! EU SEMPRE TE AMEI! Seja feliz, meu filho, seja feliz!!!"

Júlio quebra o protocolo e sai correndo da tribuna corredor adentro e vai abraçar o seu pai, chorando no seu ombro copiosa e demoradamente.

Todos, unanimemente, chorando e gritando "BRAVO! BRAVO!", aplaudiam longamente a cena fantástica e novelesca que ora se fazia viver no mundo real! Foram 5 minutos, os cinco minutos mais importantes já vividos naquela universidade!

Chamado novamente à tribuna, recebeu o seu grau e diploma. Então gritou:

- "PAI, ISSO É POR VOCÊ! TE AMO!"

O pai sorriu, mas já não tinha forças para falar. No seu coração ele via galardoado todo o seu esforço, o salário minguado dedicado à faculdade do rapaz, e, principalmente, às três horas de toda madrugada. Ele estava feliz. Podia morrer tranqüilo. Mas, morrer, já? Ele não tinha planos para morrer agora, naquele instante. Queria desfrutar dessa alegria indizível.

Deus ainda lhe deu alguns anos, os melhores da vida dos dois, do Dr. Júlio e do seu pai, que se tornaram os melhores amigos. Aliás, Júlio ficou conhecido na comunidade acadêmica como "Doutor Três Horas".

Ivete Tayar

. . .

"Honra a teu pai e à tua mãe, para que se prolonguem os teus dias, na terra que o Senhor teu Deus te dá." (Ex. 20.12.)

Que Deus dê aos leitores que têm pais vivos a oportunidade de fazê-lo em vida. Flores no túmulo murcham. Flores no coração desabrocham. Para sempre...

É o meu desejo.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Pai' - Fábio Júnior
Degustando Chá de Menta
Imagem: 'Pai e Filho' - Maurício Rett