Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

O amor: promessa e dúvida

Ensaio


Amor é uma palavra que hoje precisamos usar com cuidado. Para os poetas, é uma palavra bonita, para os conquistadores (sexuais ou religiosos), é estratégica. De outro lado, é sincera tanto quanto é confusa, para muitos amantes que, adolescentes ou maduros, se perdem em suas promessas. Não há amor sem promessa de felicidade, já dizia o escritor francês Stendhal. Amantes são aqueles que vivem em nome do amor, que o praticam à procura de um ideal de felicidade que só o amor parece realizar. Quem acredita nisso pode bem ser chamado de romântico.

Para os descrentes, porém, os que desistiram de amar, amor não passa de uma palavra em desuso. Algo nela pode soar a pieguice ou sentimentalismo. Melhor deixá-la de lado, pensa o decepcionado. O amor, para muitos, está fora de ordem. E, por isso, fora de moda e mesmo algo banal.

Além daquele que olha o amor com a dor que lhe restou, há alguém que ainda crê no amor, ainda que seja seu crítico. Talvez o amor não tenha sido a parte feliz de sua sina e é melhor analisá-lo racionalmente como qualquer objeto. Nele pesa a voz de ilusão do amor como uma promessa ideal. Algo que faz duvidar dele. Ainda que ao duvidar se esteja buscando chegar, de algum modo, perto do amor. Só a dúvida poderia nos levar a ter esperança de chegar à certeza. Pois o que há de mais certo sobre o amor é justamente a incerteza. Mesmo assim, pensar nele é um prazer mais que romântico.

Talvez o amor sobre o qual tanto falamos esteja hoje longe de nós à medida que confundimos a riqueza da expressão amor com a paixão propriamente dita. Falta-nos atenção ao amor quando o confundimos com a simples paixão, que é o desejo autoritário e desenfreado por uma coisa ou pessoa. É como se o amor fosse algo que nos toma e que não podemos compreender, quando muito podemos ter sorte com ele, ou aceitar o sofrimento, a dor com cuja rima já não podemos deixar de vê-lo.

Márcia Tiburi


Ao som de 'Só pro meu prazer' - Leoni
Degustando Uvas Roxas Geladas
Imagem: 'Uma linda manhã' - Guilherme Fávaro

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Clores

Poesia

Clores

D'antes, tínheis n'alma
Óleo, tela e pincel
Éreis plásticos, belos,
Detínheis elos não estáticos,
Singelos gestos não apáticos.

D'antes, tínheis n'água
Substância límpida a sorver,
Saciável e nobre bebida
De insaciáveis e puros lábios
Saciáveis, entretanto, um n'outro, e tanto.

D'antes, tínheis n'aquarela
Rosa-rósea o rosto corado,
O branco não era amarelado,
Não tinha gosto de fel,
E o amarelo era adocicado
Como o mais dulcíssimo mel
Tão contagiante e bonito,
Tal qual o azul do céu.
E o céu da boca vermelha,
Aquecido de um sol tropical
Não adjacia de lábios fendidos,
Feridos de um inverno infernal.

D'antes,
Tínheis
Pintados reais sorrisos no rosto,
Éreis
De arte, obra de fina apreciação,
Detínheis
Cores de todo espectro da visão.

D'antes,
Perto longe demais.
N'água rara derramastes a tela,
Misturando óleo n'aquarela,
Desfazendo cor, cores,
Despintando flor, flores,
Pintando, agora, n'alma longe,
Clores e alguns ais.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'The blower's daughter' - Damien Rice
Degustando Trufas de Uva com Vinho
Imagem: 'Sem título' - Ismael Nery

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Simbiose

Poesia

Ó princesa dos meus sonhos!
Deveras chegaste sem avisar...
Falando delicada, baixinho,
Tu vieste ao meu coração conquistar.

Tua perfeição não cabe em palavras,
Pois estas se constrangem
Diante da condição de anjo que és.
Tua feição está acima da própria beleza
Sem que isso conspurque o teu coração,
Teu amor é pedido único do cardápio
Do mais refinado que sonhei.

Contudo, é amor de insondável valor
Muito mais que mereço.
É amor que com amor se paga,
É vida a ser eternamente dedicada.

Sendo assim, tu terás minha vida como preço!
Terás muito mais que meu amor:
Serei um anjo conspirando ao teu favor!
A te esclarecer os ensejos
Para te suprir os desejos,
Para compartilhar do verdadeiro amor.

Se te amo, é porque tu me fizeste te amar assim;
Se me amas, é porque tu és metade de mim.
Então nada melhor que meu amor
Alimentar e nutrir o teu
E o teu, partilhar, nutrir e alimentar o meu.

Logo vês, meu anjo lindo,
Que, como precisas de mim,
Também preciso de você
Pois, como dizia Vinícius,
"Não existo sem você e você não existe sem mim".

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Chega de Saudade' - Vinícius de Moraes
Degustando Doce de Leite
Imagem: 'Urupê' - Cláudia Rog

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Só de sacanagem

Crônica


Meu coração está aos pulos! Quantas vezes minha esperança será posta à prova? Por quantas provas terá ela que passar? Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam entupidas de dinheiro, do meu dinheiro, que reservo duramente para educar os meninos mais pobres que eu, para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e eu não posso mais.

Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança vai ser posta à prova? Quantas vezes minha esperança vai esperar no cais? É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o aprendiz, mas não é certo que a mentira dos maus brasileiros venha quebrar no nosso nariz.

Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó e dos justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolva o lápis do coleguinha", " Esse apontador não é seu, minha filhinha". Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido que escutar. Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lógica ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao culpado interessará.

Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar. Só de sacanagem! Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo o mundo rouba" e eu vou dizer: Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.

Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau. Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? IMORTAL! Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final!

Elisa Lucinda


Ao som de 'Luís Inácio (300 Picaretas)' - Paralamas do Sucesso
Degustando Queijo Assado com Água
Imagem: 'The Thief (O Ladrão)' - Francis Aiés

domingo, 3 de setembro de 2006

Amante

Poesia



Tu só me queres devasso?
Por acaso, é o que almejas?
Queres sugar do meu âmago
Tudo que foi construído
Ao longo de anos e anos
De sonhos e idealizações?
Que lucro terias, Pequena,
Senão a devassidão na noite
E, ao amanhecer, a solidão?

Até quando devasso me queres?
Até escorrer todo desejo
Em gotículas de suor
Por entre teus seios macios?
Até tremular freneticamente
As nádegas em chamas
Com pausas abruptas de calafrios?
Até o último suspiro úmido?

Que te fazes assim?
Por que anseias que eu esteja
Liricamente em baldo, sem verso,
Sem qualquer feição de amor?

Mereces-me, realmente,
Somente pela noite, em profunda escuridão.
Ao acordares, te encontrarás em pele nua
Absorta em traidora lascívia,
Revestida de amargura,
Desprovida de amor,
E abraçada com a solidão.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'A carne é fraca' - Martinho da Vila
Degustando Vinho do Porto com Queijo Gouda
Imagem: 'Amante' - Alfonso Prellwitz