Café Alexandrino - O lado aromático da vida

quinta-feira, 29 de março de 2007

Frio, o porquê te quero

Crônica de bolso


O sol brilha ainda mais intenso com o verão. Por quase todos esses anos da minha vida passei despercebido de como a luz infuência minha rotina, especialmente meu humor. Não pense, no entanto, leitor, que sou uma samambaia mau humorada ou uma avenca com depressão.

Só aqui na costa nordeste percebi o quanto a temperatura amena me faz falta. O fato é que o sol intenso a todo tempo, sem tréguas, me irrita profundamente.

Preciso de um pouco de frio, ele me aquieta, sossega minha alma, dá vazão à minha inspiração. Preciso de frio para poder aquecer minha goela com um tinto seco, acompanhado de queijos de sabores apurados. Preciso de frio para poder degustar chocolate quente em calda, mergulhando uvas e morangos geladinhos. Preciso de frio para querer ser abraçado em todo tempo, a todo instante. Preciso de frio, sobretudo, porque amo o que o frio pode proporcionar, qual seja, um bom aconch(ego).

Faça, frio. Por favor, faça....

Ismael Alexandrino


Ao som de 'If you aks me' - Nick Colionne
Degustando Suco de Abacaxi com Hortelã
Imagem:'Caminhos' - Mariani Malinowski

A propósito de uma aranha

Crônica


Fiquei observando a aranha que construía sua teia, com os fios que saem dela como um fruto que brota e se alonga de sua casca. A aranha quer viver, e trabalha nessa armadilha caprichosa e artística que surpreenderá os insetos e os enredará para morrer. Tua morte, minha vida − diz uma frase antiga, resumindo a lei primeira da natureza. A frase pode soar amarga em nossos ouvidos delicados, enquanto comemos nosso franguinho. Sua morte, vida nossa.

Os vegetarianos não fiquem aliviados, achando que, além de terem hábitos mais saudáveis, não dependem da morte alheia para viver. É verdade que a alface, a cenoura, a batata, o arroz, o espinafre, a banana, a laranja não costumam gritar quando arrancados da terra, decepados do caule, cortados e processados na cozinha. Mas por que não imaginar que estavam muito bem em suas raízes, e se deleitavam com o calor do sol, com a água refrescante da chuva, com os sopros do vento? Sua morte, vida nossa.

Mas voltemos à aranha. Ela não aprendeu arquitetura ou geometria, nada sabe sobre paralelas e losangos; vive da ciência aplicada e laboriosa dos fios quase invisíveis que não perdoam o incauto. Uma vez preso na teia, o inseto que há pouco voava debate-se inutilmente, enquanto a aranha caminha com leveza em sua direção, percorrendo resoluta o labirinto de malhas familiares. Se alguém salvar esse inseto, num gesto de misericórdia, e se dispuser a salvar todos os outros que caírem na armadilha, a aranha morrerá de fome. Em outras palavras: a boa alma tomará partido entre duas mortes.

A cada pequena cena, a natureza nos fala de sua primeira lei: a lei da necessidade. O engenho da aranha, a eficácia da teia, o vôo do inseto desprevenido compõem uma trama de vida e morte, da qual igualmente participamos todos nós, os bichos pensantes. Que necessidade tem alguém de ser cronista? − podem vocês me perguntar. O que leva alguém a escrever sobre teias e aranhas? Minha resposta é crua como a natureza: os cronistas também comem. E como não sabem fazer teias, tecem palavras, e acabam atendendo a necessidade de quem gosta de ler. A pequena aranha, com sua pequena teia, leva a gente a pensar na vida, no trabalho, na morte. A natureza está a todo momento explicando suas verdades para nós. Se eu soubesse a origem e o fim dessas verdades todas, acredite, leitor, esta crônica teria um melhor arremate.

Virgílio Covarim


Ao som de 'Aerial' - Paul Taylor
Degustando Café Preto
Imagem:'Macro Perigosa' - Markinita

quarta-feira, 28 de março de 2007

(A)cabou

Poesia


Não fique aí a essa distância
Falando-me coisas inaudíveis,
Ininteligíveis, ingesticuláveis,
Simplesmente
Dos olhos para fora.

Não lacrimeje essa lágrima
Que não é sua,
Mas da outra que, um dia,
(In)felizmente
Conheci.

Também não levante a voz para
Falar do que eu posso ou não,
Pois posso muito mais que você
(bem sei!),
Muito menos que nós dois
(te amei!).

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Promise you' - Brian Hughes
Degustando Café com Cereja
Imagem:'Splash I' - Ricardo Camargo

terça-feira, 27 de março de 2007

Ecologia poética

Ensaio

Como pensar em ecologia sem incluir a preservação das palavras? E com a ecologia das palavras, quem se preocupa? E os lençóis subterrâneos da fala que são contaminados pelo sarcasmo, pelo cinismo e, sobretudo, pela indiferença, quem cuida de sua prevenção?

Corremos o risco de perder a natureza quando deixamos que a linguagem fale em nosso lugar e não mais falamos por ela. Quando somente transferimos a responsabilidade de dizer e de nomear pelo ato de repetir.

Não é o comportamento que condiciona as palavras. Mas as palavras formam o comportamento. As palavras são o comportamento. Somos palavras.

De que adianta separar o lixo seco do orgânico se não separamos a linguagem orgânica da seca em nossa rotina? E a coleta seletiva da língua, onde fica?

De que vale cuidar do desperdício de água se não cuidamos também do desperdício de linguagem?

Não será igualmente criminoso usar palavras desnecessárias, sem entusiasmo, sem força de vontade, sem alegria? Por descaso ou por descanso. Para ser compreendido e não pensar. Pela pressa, sendo que a pressa aumenta o esquecimento, inibe a lembrança.

Por dia, quantas palavras são reproduzidas desprovidas de sentido? Lançadas na terra como latas de alumínio, que demoram mais de um século para se decompor.

Um lugar-comum é tão poluente quanto pilhas e baterias do celular. Expressões que nada têm de pessoal, que não permitem a descoberta ou o deslumbramento, estancam a circulação do afeto. Cessam o gosto de falar. Interrompem o gosto de ouvir.

Quantos fósseis são abandonados no cotidiano do idioma, quantos verbetes esperam sua chance de tratamento no aterro sanitário do dicionário? Será que não viramos fantasmas se portamos uma língua morta?

Poderíamos latir, poderíamos miar, poderíamos uivar, tudo isso é ainda comunicação. Mas falar não é somente comunicar, é se comprometer com a direção do timbre.

Palavras são de vidro. Palavras são de metal. Palavras são de plástico. Palavras são de papel. Não se pode colocar todas com o mesmo peso, no mesmo destino. É preciso discerni-las. Uma criança me entenderia.

Tolerância, por exemplo, é de vidro. Reboa por dentro. Faz volume antes de acabar. Não pode ser jogada fora, pois levará milhões de anos antes de virar pó.

Respeito, por sua vez, é de metal. Inteiriça. Difícil de quebrar. Fala-se de uma única vez como uma lâmina.

Condescendência é de papel, o acento vai lá no fim, suscetível aos rasgos da tesoura e das mãos ansiosas. Soletre, veja, imagine. Deite a voz, não fique de pé.

Assim como reciclamos o lixo, as palavras dependem da renovação. Mudar a ordem, produzir significação, exercitar gentilezas, valorizar detalhes. Não deixá-las paradas, desacompanhadas, viúvas.

Talvez seja daí minha incompetência em me desfazer do arranjo de rosas que recebo no aniversário de casamento. Desligo as pétalas do miolo e espalho as rosas nos livros. Fazem sombras para as frases.

É poluente dizer ao filho "nem se parece comigo" para ameaçá-lo. Uma convenção a que a maioria recorre para se livrar do cuidado, sacrificando um momento de particularizar sua experiência paterna e materna. Por que não procurar afirmar "você se parece comigo mesmo quando não se parece"?

Ou há algo mais solitário e desolador que resmungar "eu avisei" para sua mulher quando ela erra? Mostra que já a estava condenando antes de qualquer resultado e atitude. Em vez de cobrar, por que não compreender? Transformar o lixo hospitalar (sim, corta-se um braço dela com essa sentença) em adubo de frutas com a simples concisão de "a gente resolve".

São períodos postiços, artificiais, fingidos, que corrompem a respiração. Ao encontrar um colega antigo, logo nos despedimos: "Vamos nos ligar?" Isso significa o contrário, não vou telefonar nos próximos três anos.

Até que ponto não se empregam palavras para se esconder o que se quer, para disfarçar, para ocultar? Quantos sinônimos para não dizer absolutamente nada. Para se afastar do que realmente se desejava declarar. Foge-se da palavra certa pela palavra aproximada. Uma palavra vizinha não mora no mesmo lugar da verdade.

Palavra é sentimento. Mas – cuidado – as palavras não podem sentir sozinhas.

Palavra é poder. Ao esgotar seu significado, esgotamos nossa permanência.

Fabrício Carpinejar


Ao som de 'Saigon' - Emílio Santiago
Degustando Chocolates Suíços
Imagem:'Árvore poética' - Juliana Vidigal [Revista Vida Simples]

terça-feira, 13 de março de 2007

Descobri que sou alvo de violência

Curtas


Já tem uns três anos que Recife ganha o título de cidade mais violenta do Brasil. Recentemente, descobri que o bairro em que moro é aonde tem mais assaltos, roubos e furtos. Nada mais interessante que o que me informaram hoje: a rua na qual eu moro é a campeã da cidade em número de assaltos e seqüestros.

É uma descoberta insólita, eu sei. Mas fiquei até empolgado. Por favor, se me seqüestrarem, passem comigo em casa para eu pegar as contas vencidas para me ajudarem a pagar. Será uma oportunidade única de eu ter uma ajudinha e sair do vermelho.

Sejam bem-vindos, bandidos. Mas venham de jipe, caminhonete ou trator, pois o asfalto da rua é bem cheio de buracos. Muito cuidado ao transitarem na calçada para não pisar em merda, pois têm uns vovôs e umas madames sem noção que andam com seus doguizinhos pelas calçadas e as enchem de cocô cheios de vermes compridinhos.

Ah!, se me seqüestrarem, levem também minha vizinha, ela é bem agradável... aos olhos.

Ismael Alexadrino

sábado, 10 de março de 2007

Brasil brasileiro

Poesia


Grande
Em aparências
Glorioso
Em essências.

De longe,
Um coração amoroso.
Salve! Salve!

De perto,
Um pulmão tuberculoso.
Salve-o! Salve-o!

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Brasil, mostra tua cara!' - Cazuza
Degustando Café Preto com Pão de Queijo
Imagem:'Tô de olho' - Margot de Castro

quinta-feira, 8 de março de 2007

Dia dos amores | Homenagem às mulheres

Poesia


No dia d`A mulher
Queria estar ao seu lado,
Ter seus olhos nos meus,
No seu colo deitado.

No dia d´A mulher
Queria que ela estivesse aqui,
Pois sei que ela bem-me-quer
Como nunca mereci.

Queria conceder-lhe algo.
Nada de ouro, riqueza,
Ou coisas típicas de um fidalgo.

A dois amores, particularmente,
Eu externo toda devoção:
Um -- puro e angelicalmente --
Trouxe-me até aqui,
O outro –- com paixão –-
Que me leve daqui.

Ismael Alexandrino

Dedico à minha mamãe e ao meu amor.


Ao som de 'Como é grande o meu amor por você' - Oswaldo Montenegro
Degustando Capuccino de Chocolate com Chantilly de Menta
Imagem:'Meus amores' - Ismael Alexandrino




Discurso

Já me disseram que falo muito em mulher, que a tenho como temática em minhas poesias. Equivocaram-se. Todos. Eu não somente falo em mulher, eu a vivo em cada poro, em cada suspiro. Posso senti-la tanto telepaticamente, quanto a menos de um milímetro de mim. Não raro, gosto de acariciá-la com as mãos e com o olhar.

A delicadeza deste ser ímpar, seu olhar que a todo tempo pede proteção, cuidado, é de uma singeleza contagiante. Seu deambular com galanteio é o mais puro ferormônio que invade cada espaço de minhas narinas; sinto seu cheiro em cada passo leve, solto, elegantemente trocado.

A contradição que lhe é peculiar, o choro fácil e sem motivo, o nervosismo em momentos de tensão, tudo isso me inspira, me comove.

Houve tempos que pensei que precisaria do amor de todas para bem viver. Enganei-me. Não mais penso, pois a certeza já se faz presente e toma conta das minhas convicções. Não pensem, contudo, que saio por aí com todas. Enganam-se. Mal me interpretam. Saio apenas com uma, que amo de uma forma diferente, a ponto de querer viver ao seu lado para sempre. Mas não deixo de amar nenhuma que passa próximo de mim. Amo-as sim, todas. Amo-as a tal ponto de torcer, sinceramente, que encontrem suas almas gêmeas e que estas as valorizem como convém, que lhes dê carinho, proteção, cuidado, que lhes seja fiel, companheiro, cúmplice, leal e, sobretudo, saiba admirá-la na sua essência cheia de percalços e idiossincrasias, mas de alma tão nobre e delicada que beira o divino.

Ismael Alexandrino

Dedico a todas as mulheres da face da Terra, as que já vieram e as que ainda virão.


Ao som de 'Amor sem limites' - Roberto Carlos
Degustando Trufas de Uva
Imagem:'Rosa' - Joice

quarta-feira, 7 de março de 2007

Odeio acordar cedo

Curtas

Certa vez, justificando porque não gostava de acordar cedo, Chico Buarque disse que era porque fazia samba e amor até mais tarde e, por isso, tinha muito sono pela manhã.

Lembrei de Chico ao justificar porque odeio tanto acordar cedo, ou melhor, levantar cedo: porque faço poesia e amor até mais tarde e tenho muito sono pela manhã. Além disso, minha cama tem um velcro que sempre me abraça quando nasce o dia e o sol aparece na janela.

Ismael Alexandrino


Degustando Suco de Laranja

terça-feira, 6 de março de 2007

Jogador de futebol

Entrevista


Elvis, qual a sua expectativa para este jogo domingo à tarde no Maracanã?
– É, a gente vai jogar lá domingo, estou com uma grande expectativa.

Foi dito nos jornais durante a semana que o seu sonho era jogar no maior estádio do Brasil. O que você pensa em fazer de diferente assim que entrar em campo?
– É, a expectativa é muito grande de entrar em campo. Minha maior vontade é entrar naquele gramado e, assim que pisar nele, fazer o sinal da cruz. Será pra mim uma emoção muito emocionante.

Jogar contra o Flamengo, no Maracanã, é o sonho da maioria dos jogadores em início de carreira?
– É, o Framengo é um grande clube, uma equipe das ponta, sempre arrasta grandes populações para o estádio, eu sonho um dia poder jogar lá.

Você arriscaria um placar para este jogo?
– É, não arrisco não, a gente precisa manter a humildade com a cabeça erguida e entrar pra ganhar, independente de resultado, a gente quer ganhar.

Muitos ídolos do futebol brasileiro e mundial jogaram no Flamengo. Tem algum em quem você se espelha?
– É, tem muitos ídolos, o Romário é meu ídolo. Também vou tentar fazer 1000 gols, mas não só nesse jogo, claro.

Quando você vê aquela grama verdinha do Maracanã, não dá vontade de comer não?
– É, não, não...não dá não. Você está me chamando de comilão, é? (risos)

Elvis, para encerrar, qual o seu recado para o torcedor no domingo?
– É, eu tenho um recado importante pro torcedor: Pai, não esqueça de trazer, amanhã, aquele cartaz que a mãe fez pra mim entrar em campo segurando ele escrito "Galvão, filma eu; tô na GROBO".
Também queria que todos forem ao estádio não façam tumulti, que vai todos excrusivamente para ver o espetáculo, sem brigas, que possam haver paz nos estádios de futebol e no mundo.

Obrigado, Elvis. Tenha um bom jogo.
– Odinada, valeu...um abraço.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'É uma partida de futebol' - Skank
Degustando Isotônico de Uva
Imagem:'Pé descalço' - Antônio Azevedo

segunda-feira, 5 de março de 2007

Sistemas no Brasil

Curtas

No Brasil, capitalismo é quando todo mundo dá tudo para o Estado e o Estado não dá nada para ninguém. Socialismo é quando o Estado dá tudo para o PT.

Fábio Danesi Rossi
(do fdr)

Degustando Café Preto

Tempo para tudo

Crônica

Certa vez, ouvi Ronaldo Lindório, doutor em antropologia, contar uma experiência que passara há alguns anos.

Ele estava na África por uma causa bastante nobre: fora incumbido de mapear uma região com intenção de ter acesso a uma tribo indígena. Levava consigo seu ideal e a informação de que se tratava de uma tribo bastante hostil. Aos olhos de muitos, uma aventura desnecessária.

Foi levado ao encontro de dois senhores que lhe serviria de guia. Na busca de maiores informações sobre a tribo, descobriu-se apenas que ela ficava na margem de um dado rio. Há de se convir que não fora uma informação muito precisa, mesmo porque é comum qualquer povo se estabelecer próximo de leitos d'água e, também, tratava-se de um rio bastante longo. Portanto, a informação obtida não ajudara muito.

Amanhecendo, Ronaldo e os dois guias, colocaram as botas, as malas nas costas e embrenharam savana a dentro. Andaram o dia todo e nada de encontrar aquele povo. Não por acaso, no ocaso decidiram parar e descer as mochilas. Ali dormiriam. Andar à noite onde não se conhece não seria uma atitude cônscia. Noite escura e fria, só se ouvia barulho de bichos e nada mais.

Antes do arrebol, levantaram e seguiram viajem. Sol a pino, andaram quase o dia todo, até que encontraram uma maloca. Mas não era a que estavam procurando. A exaustão já tomava conta daqueles homens. Sem condições de seguir viajem devido ao desgaste físico, os dois guias disseram a Ronaldo que não seguiria com ele além dali, pois estavam impossibilitados. Ali dormiram e o jovem, animado por demais, disse que seguiria a viagem, mesmo só.

Botas calçadas, mochila nas costas, rompeu-se o crepúsculo matutino. Região de planície, mesmo com sol ardente, estava totalmente alagada por ser época de chuva. Andava com água acima dos joelhos sempre, às vezes desequilibrando pelo peso da bagagem. O dia foi terminando e o jovem rapaz começou pensar onde dormiria. Afinal, numa savana totalmente alagada ficava difícil. Tinham as árvores, mas as cobras gostam de nelas ficar para dormirem. Como na região tinham muitas, não queria arriscar a concorrência por um galho. Andando mais um pouco, Ronaldo viu uma pedra acima um pouquinho acima da água. Aquela seria sua cama naquela noite. Estendeu a toalha e deitou em cima da pedra. Noite escura, fria, só ouvia-se o barulho de bichos e nada mais.

Até que, não bastasse, começou a chover forte durante a madrugada. Aquilo, literalmente, foi a gota d'água. No meio de um pântano escuro, cheio de bichos, frio, debaixo de chuva, com fome, extremamente debilitado fisicamente, sem forças para prosseguir, Ronaldo pensou o que estar fazendo ali. Talvez fosse loucura da sua cabeça. Afinal, podia muito bem estar em casa, quentinho, de barriga cheia. Coisa que um doutor em antropologia, que já havia recebido vários convites apra ensinar nas melhores universidades sobre o assunto, poderia usufruir plenamente.

Breve momentos de reflexão e...ele não iria voltar dali. Já tinha caminhado muito rumo ao seu objetivo para desistir. Com uma força divina, seguiria caminho ao amanhecer. Dia claro, cessada a chuva, botas calçadas, carga nas costas, e então, salta-se da pedra pântano a dentro. Caminhados não mais que trinta minutos, viu algumas garças ao longe levantarem vôo. Alguma coisa havia feito com que elas voassem. Aproximou. Era, sim, a procurada tribo.

Ali fez todo seu trabalho projetado e, de fato, realizou-se. Contudo, não desistiu. Simplesmente, acreditou no seu ideal, lutou pelo seu objetivo e, confiando que algo divino poderia lhe sustentar, soube esperar seu tempo.

Diante disso, consigo olhar para o horizonte e, mesmo que, às vezes, escuro, nebuloso, distante, arredio, seguir o caminho. Mesmo que, às vezes, pensando desanimar, cansado de caminhar, cansado de sofrer, de chorar, de desilusões, o tempo haverá de chegar. Quem preconizou isso é O mesmo que colocou o ideal no coração daquele antropólogo, que lhe permitiu os dias cansativos, que permitiu a chuva num momento de angústia. Mas também é O mesmo que fez secar a chuva, que fez clarear o dia, que lhe suscitou novo ânimo. E, por mais que intempéries aconteçam, ELE é O dono do tempo e só ele faz as garças alçarem vôo.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Paciência' - Elisa Queiroga
Degustando Leite Achocolatado
Imagem:'Garça' - Ivo Mota

sexta-feira, 2 de março de 2007

O porco do brasileiro

Crônica

O Brasil é um país sujo. Não raro, também é fétido. Não me refiro à sujeira de caráter dos gestores e governantes, muito menos à corrupção política impregnada na corja eleita e tida – por eles e pelo povo – como normal, natural, já esperada. Refiro-me à sujeira física, fácil de ser detectada aos olhos de quem vê e ao nariz de quem cheira. É sujo, tão somente, porque tem lixo onde não era para ter. E isso acontece, basicamente, porque o brasileiro tem um peculiar espírito suíno, é muito mal-educado e tem péssimos hábitos.

Semana passada, eu caminhava pela calçada no bairro de Boa Viagem, onde moro em Recife, e quase fui alvejado na cabeça por uma lata de cerveja. Um "distinto" cidadão (sem noção dos deveres de um) dirigindo uma camioneta Grand Cherokee abriu o vidro do seu blindado e, simplesmente, jogou a latinha na calçada. Pelas silhuetas dentro do carro, percebia-se que ele estava com a sua família ou, talvez, a família da amante. O fato é que tinha pelo menos duas crianças dentro do carro vendo aquela cena, aprendendo, na prática, a lição de como ser porco.

Canso de ver cenas como a descrita todo santo dia, de segunda a domingo. Quando as vejo, dá uma imensa vontade de sair correndo atrás de quem fez isso, pegar a latinha e enfiar goela abaixo. Isso, porque sou altamente pacífico. Se eu não fosse, eu corria e enfiava. No entanto, apenas fico na imensa vontade... e no lamento de saber que verei tais cenas repetidas vezes por dia todos os dias. Limpei meus pés do que espirrou em mim, abaixei, peguei a lata e a joguei na cesta de lixo.

O engraçado é que esses mesmos "cidadãos" se acham no direito de reclamar dos governantes pela péssima drenagem da cidade, em que basta uma chuva de cinco minutos para todas as ruas estarem alagadas. Claro! Pois os esgotos estão todos entupidos de latinhas de cerveja, papéis de balinha, copos descartáveis, extratos bancários, bandeirolas, canudinhos, folders de supermercado, cartazes de propaganda, santinhos de políticos, máscaras de fantasias de idiotas.

E no quesito "porcaria de brasileiro" não há distinção de classes. Todas desempenham muito bem. Os ricos jogando restos de bebidas, embalagens de mp3, baterias de celular. Os pobres deixando suas montanhas de estrumes na praia, atrás das árvores, e o peculiar cheiro de urina nas muretas da cidade. E os filhos crescem aprendendo muito bem a lição de como viver sem ver a sujeira ao redor, nem sentir o cheiro dos seus dejetos diários. Cada qual com a sua respectiva renda e embalagem.

Um ensinamento que corrigisse esse mau hábito deveria começar em casa – a famosa educação de berço. Também seria interessante, talvez, estender o ensino nas escolas, promovendo aulas educativas sobre o tema, estimulando os alunos a lerem sobre como aproveitar aquilo que descartamos. Se bem que não seria fácil ter aderência na prática da leitura. Afinal, o exemplo que se tem do representante máximo da nação tupiniquim é a célebre frase "é muito chato ter que ler". Chato é ter um presidente pós-graduado em MOBRAL.

Sempre que me propuseram algo muito grandioso e com soluções mágicas, hesitei. Não que eu não pense grande, não é isso. Ao contrário, sempre me disseram que sonho alto demais, que beiro a utopia. Sonhador eu sou mesmo, admito. Sempre fui. Utópico não. Excetuando os milagres – em que acredito –, sou mais afeiçoado às coisas possíveis de realização no dia-a-dia, individualmente. Não sou daqueles que para aderir a alguma causa precisa haver panelaço, agitação e o povão reunido com bandeiras e gritaria.

Sendo assim, o que proponho é algo bem simples: jogue lixo no lixo, seu porco!

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Alagados' - Paralamas do sucesso
Degustando Chá de Camomila
Imagem:'Lixo' - Suellen Maciel

quinta-feira, 1 de março de 2007

Rotina

Poesia


Amar cansa.
Mas prefiro
Ser cansado
Digno
A descansado
Desamado
Indigno
Dela.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Segredo' - joão Gilberto
Degustando Morango com Creme de Leite
Imagem:'Girando' - José Araújo