Café Alexandrino - O lado aromático da vida

quarta-feira, 30 de maio de 2007

A vaidade de ser


Artigo

Falar de vaidade é falar da existência, pois, tudo é vaidade.

Não apenas a juventude e a primavera da vida, mas tudo o mais que concerne à existência, em qualquer fase, tempo ou idade, de acordo com o diagnóstico filosófico do Eclesiastes, é vaidade.

“Todo homem, por mais firme que seja, é vaidade” — decreta o salmo.

Corremos por vaidade. Produzimos por vaidade. Conquistamos por vaidade. Desejamos pessoas e coisas por vaidade. Sonhamos vaidades. Cantamos vaidades. Narramos vaidades. Sofremos vaidades.

Assim, nossas lágrimas são vaidades e nossas gargalhadas mais ainda. Afinal, quem vive sem os fugazes gostos da vaidade? O melhor de nós que esteja é pé, se em pé aparenta estar, o está apenas pelo inflamento de vento de nada e que o incha de vaidade.

Até nossas melhores intenções são vaidades. Sim, nossas virtudes mais sinceras ainda são como jazida de minério preciso penetrado de lama, terra e cascalho.

Disfarçamos tudo muito bem. Sim, para que nossas vaidades não se tornem feias de mais aos sentidos de todos, escondemo-las muito bem. Mascaradas de amor ao próximo, de missão social e cívica, de solidariedade, de campanhas pela paz, de fervor religioso, de cruzada moral e ética, de pureza doutrinária, de ação social e educacional, de piedade devocional, de dedicação às causas altruístas, de tudo o que puder passar por bom ou melhor…

Mas lá no fundo lateja a vaidade!

Assim, todas as nossas justiças são como trapo de imundícia, e, portanto, quem se enxerga já não se gloria de nada; pois diz: “Senhor me salva das minhas virtudes, para que elas não te sejam o culto do louco!”. Há, porventura, entre os que me lêem alguém que deseje me contestar, dizendo: “Ah! Eu não! Eu não sou vaidade”?

Se não há, então, pode ainda haver salvação para nós. Ora, isso se a consciência se tornar humilde e verdadeira no serviço à verdade, e que começa por nos declarar irredimível vaidade.

Minha salvação está na minha admissão sincera de total perdição ante os olhos do Santo.

Por tal admissão eu recebo Graça todos os dias. Especialmente nos dias quando venço meu engano de me achar melhor então do que antes. Na minha força é que preciso mais e mais de minha fraqueza. A fraqueza é o melhor antídoto contra a vaidade como virtude; e que é a forma de vaidade que o diabo mais gosta de encontrar em mim.

Nele, cuja vida foi a única fora do serviço à vaidade,

Caio Fábio


Ao som de chuva respingando na janela
Degustando Quinta do Rio Grande Tinto Suave
Imagem:'Clausura' - Guilherme Sanches

sábado, 26 de maio de 2007

Moça, Chega

Poesia

Moça, chega dos temas habituais:
Impressões da natureza, o fluir do tempo.
Chega do amor, chega do sofrimento.
Chega da beleza dos modernos hai-kais;
chega dos clássicos sonetos geniais.
Chega até aqui devagarinho
e lê bem baixinho um beijo em minha boca.

Jorge Pasin


Ao som de 'Morena Flor'- Vinícius de Moraes
Degustando Quinta do Rio Grande Tinto com Queijo Gorgonzola
Imagem:'Sthefany Brito' - Desirée do Valle

terça-feira, 22 de maio de 2007

Convicção

Poesia

Certo,
E errante,

Caminho

Com a certeza

Da dúvida atroz.


Ismael Alexandrino



Ao som de 'Metáfora' - Elisa Queiroga

Degustando Pêssego com Creme de Leite

Imagem:'A força do Outono' - Pedro Casquilho

domingo, 20 de maio de 2007

Italo Bianchi, o Cronista em Dialogismo com a Sociedade

Artigo


Italo Bianchi em uma de suas plataformas de composição

Em um debate com Karl-Otto Apel, Jacques Derrida afirmou que a comunicação não existe. Apel declarou que concordava. Abruptamente, Derrida não deixa por menos e diz: “Então eu me expressei mal”.

Tendo o pós-estruturalista Derrida como escopo, em sua verdade exponencial, declino-me para apresentar a expressiva forma de dialogismo do cronista Italo Bianchi com o seu público através de crônicas regularmente publicadas em jornais e em livros.

De sua esferográfica, saem engenharias de composição, cujas plataformas – quando bem observadas – facultam-nos sólido repertório e, sobretudo, ensinam-nos a escrever com maestria.

Enuncividade, enuniatividade, conteúdo programático, progressão temática, paralelismos, uso de elementos de coesão. Eis algumas de suas impressões decantadas com inteligência que asseguram uma composição clara ao seu leitor.

Em meio a inúmeros livros que nos orientam a escrever, Italo Bianchi ora nos lembra a filosofia de composição de Edgar Allan Poe, ora nos faz recordar A Fórmula do Texto, de Wander Emediato. Há matemática aplicada em seus textos. Embora não use números, sua relação com as palavras garante somas, subtrações, multiplicações e divisões concretas.

Tenhamos Os cantinhos da Casa, crônica sua publicada em 25 de novembro de 2004, como ilustração para este artigo.


A MATEMÁTICA DO CRONISTA COM AS PALAVRAS

Seu texto já traz no primeiro período enuncividade e enunciatividade. Aquela é o fato, é a objetividade; esta é a leitura sobre o fato, é a subjetividade. Mas o fato deve se sobrepor, pois seu propósito é a composição de uma crônica. E assim ele o faz com esmero. O substantivo “desgraça”, o adjetivo “desolados” são gotas – embora expressivas – no oceano enuncivo: “Dias após a desgraça do Areia Branca, quando o edifício virou escombros, um dos desolados ex-moradores deu entrevista lamentando, acima de tudo, ter perdido os cantinhos da casa”. Eis o primeiro período muito mais enuncivo, mas com a enunciatividade inclusa, sobretudo com o emprego de duas classes de palavras. Esta fusão garante paralelismo. Proporciona a inclusão de um sentimento coletivo, faculta o lamento de uma sociedade, cujos olhos testemunharam os escombros. As toneladas de concreto ao chão sentem o olhar pesado de uma sociedade sobre os escombros.

O uso da figura de construção chamada comparação no período seguinte intensifica esse pesar. Confira: “Mais do que o risco de morte que tinha corrido, mais do que a perda de um patrimônio, mais do que a situação de sem-teto na qual se encontrava agora, o desafortunado lamentava ter perdido para sempre os cantinhos da casa.” Eis todo um período – seu segundo período na crônica – tomado o lugar de um advérbio de intensidade. Eis uma locução adverbial frasal expressando o choro de uma perda não mensurada ou calculada em moeda corrente. Agora, quem se eleva é a enunciatividade. Ou melhor, enuncividade e enunciatividade estão em um mesmo patamar.

O quarto período é iniciado pela conjunção explicativa “Pois”. Antes, há um ponto. Não é comum o emprego do ponto, mas de vírgula. Só que o cronista quer um espaço maior para se recompor em meio ao que sente, em meio a queda do prédio, em meio – melhor dizendo – do cantinho perdido. Volta-se para um comício dentro de sua própria alma. Já não está o autor em seu espaço extrínseco. Aguardemo-lo, nobre leitor. Ele há voltar com vozes interrogativas. Enquanto isto, acompanhe o terceiro e o quarto parágrafo: “Ainda que feito sem maiores detalhes, o depoimento me tocou profundamente. Pois fiquei imaginando a importância emocional que tais cantinhos deviam representar na vida daquele senhor e os motivos que o levaram a fazer, de pronto, esta declaração.” O uso do fragmento “...me tocou profundamente” exigiria retomar o fôlego e voltar-se para as variações de seu imaginário.

E a voz do cronista se inquieta em seu texto, chegando com uma outra figura de construção, a interrogação. Com esse instrumento de nosso idioma, o leitor atento se depara com as inquietudes de quem testemunha a enuncividade. Observe, caro leitor: “Por que numa hora de tanta infelicidade alguém pode externar como dano maior algo que pertence exclusivamente à sua intimidade? Ou seja, declarar como prejuízo irreparável o valor sentimental de determinados retalhos de ambientes?” Temos o quinto e o sexto parágrafo. A segunda interrogação é metalingüística, isto é, o esforço de quem escreve para dar conforto ao seu leitor. Está o cronista próximo de seu leitor. Busca ser compreendido no que declara. Quer a comunhão do seu leitor.

Eis todo o primeiro parágrafo, enfim, ou seja, os seis períodos que constituem o primeiro parágrafo de seu matemático parágrafo:

“Dias após a desgraça do Areia Branca, quando o edifício virou escombros, um dos desolados ex-moradores deu entrevista lamentando, acima de tudo, ter perdido os cantinhos da casa. Mais do que o risco de morte que tinha corrido, mais do que a perda de um patrimônio, mais do que a situação de sem-teto na qual se encontrava agora, o desafortunado lamentava ter perdido para sempre os cantinhos da casa. Ainda que feito sem maiores detalhes, o depoimento me tocou profundamente. Pois fiquei imaginando a importância emocional que tais cantinhos deviam representar na vida daquele senhor e os motivos que o levaram a fazer, de pronto, esta declaração. Por que numa hora de tanta infelicidade alguém pode externar como dano maior algo que pertence exclusivamente à sua intimidade? Ou seja, declarar como prejuízo irreparável o valor sentimental de determinados retalhos de ambientes?”

A ANALOGIA DE ENUNCIVIDADES

Há comparação por igualdade, comparação por inferioridade e comparação por superioridade. Com o advérbio “igualmente”, o autor utiliza todo o seu segundo parágrafo para fazer analogia entre fatos, só que um externo a nós e o outro interno a nós. Mas o primeiro parágrafo de sua crônica assim o fez. Portanto, em seu segundo apartado, o cronista apenas faz a leitura do que vivenciou no primeiro. E o fragmento “traçando um paralelo” denuncia sua intimidade com a matemática. Veja, leitor atento:

Refletindo, no momento, sobre a imprevisível espontaneidade da declaração daquele senhor, acabei traçando um paralelo com os cantinhos da nossa mente. Sim, porque se trata, igualmente, de refúgios para os quais nós todos recorremos nas horas de aflição.”


A DENSIDADE DE SUAS ENUNCIATIVIDADES

O terceiro parágrafo de seu texto em estudo, Os cantinhos da casa, é denso em enunciatividade. É-nos oportuno mergulhar na enunciatividade, no tempo psicológico proposto pelo autor. O próprio título da crônica nos convida para esse mergulho. O emprego da função emotiva ( uso da 1ª pessoa ), ressaltando o “eu” coletivo, torna cada um de nós exponencial. Leva-nos para nossos cantinhos. Somos direcionados para habitarmos nossas cavernas, preservando o valor de nossos refúgios. É, digamos, o endereço de nossas catarses.

Neste terceiro parágrafo, observa-se o primeiro período expressar uma afirmação: “Eu tenho a convicção que todos nós cumprimos o caminho de nossas vidas percorrendo infinitas etapas que ficam bem ou mal registradas na fluidez da nossa memória, mas reservamos uns cantinhos especiais para certos momentos”. Em seguida, vem-nos o autor com uma estrutura interrogativa: “Que momentos são esses?”Eis mais um paralelismo. É a porta de entrada para a densidade enunciativa que segue no parágrafo. O emprego de “Acho” dá transparência à subjetividade no texto. A repetição do “Acho” solidifica uma gradação de enunciatividades. As interrogativas que seguem concebem a presentificação do autor em seu texto. É o agora em evidência decantado no tempo psicológico. Leiamos o parágrafo por inteiro:

Eu tenho a convicção que todos nós cumprimos o caminho de nossas vidas percorrendo infinitas etapas que ficam bem ou mal registradas na fluidez da nossa memória, mas reservamos uns cantinhos especiais para certos momentos. Que momentos são esses? Acho impossível classificá-los por gênero. Acho que só podem ser classificados por graus. Graus de intensidade emocional. Acho que é para eles que nós reservamos esses espaços especiais. Para que fiquem indeléveis. Serão então os mais relevantes registrados até uma altura qualquer de nossas vidas? Serão, se por isso entendermos, os que fizeram vibrar com maior intensidade as cordas da nossa sensibilidade. Pois esses momentos felizes ficam guardadinhos na mente e é à lembrança deles que nós apelamos – consciente ou inconscientemente – na busca de uma compensação, um refúgio, uma consolação da qual precisamos para enfrentar alguma situação adversa que venhamos a atravessar.”

O último parágrafo traz convicções àquele que foi em busca de respostas em sua profunda enunciatividade. Foi, portanto, oportuno iniciar o derradeiro parágrafo com “Pois é”. As inúmeras exemplificações apresentadas comprovam respostas aos seus questionamentos: “a leitura daquele livro tantas vezes adiada e finalmente realizada com satisfação plena”, “aquele singelo, mas para a gente importante negócio fechado...”. Enfim, as inúmeras exemplificações são comprovações ao leitor e a si mesmo, ou seja, ao próprio investigador no texto composto. Ei-lo:

“Pois é. Parece que acabo de descobrir que os cantinhos privilegiados da memória são muito parecidos com os cantinhos ambientais da intimidade da gente. Eles guardam a lembrança de momentos entre os mais emocionantes e significativos, produzidos pela evolução do intelecto, do relacionamento e da sensibilidade das pessoas. Aquele primeiro e tão suspirado encontro amoroso..., a leitura daquele livro tantas vezes adiada e finalmente realizada com satisfação plena..., aquele singelo, mas para a gente importante negócio fechado, em certos momentos, com um simples aperto de mão..., assim como tantos outros pequenos e grandes prazeres e algumas realizações que pontuam a nossa existência acontecem nos mais diversos lugares, neles incluídos os tais cantinhos da casa da gente. Chegando ao ponto daquele senhor considerar o seu sumiço como a maior perda provocada pelo desmoronamento do imóvel. Uma perda inestimável no momento em que eles tinham virado apenas cantinhos da memória.”


A predominância é da enunciatividade, tendo a unidade textual como análise. Não poderia o cronista fugir a isso. O título que ele selecionou para o texto impõe a acentuação da subjetividade. Apenas o primeiro parágrafo é expressivo em enuncividade. Da perda de apartamentos, o cronista assenta em páginas perdas incomensuráveis, que talvez o jornal não viesse a permitir em outro gênero textual: o desmoronamento dos cantinhos em cada apartamento de seus mais diversos moradores, representados coletivamente por um de seus moradores. O uso do gerúndio – às vezes tão ignorado em seu valor por quem orienta para composição de textos – espelha soma contínua; o emprego da conjunção adversativa reflete subtrações; suas reticências também somam indefinições aparentes, mas que salvaguardam subjetividades de seus leitores sensíveis e dos que pensam estar à margem do conteúdo ideativo da crônica; os parágrafos dividem a progressão temática em apartados que não são ilhas, mas que fronteirizam cada cantinho de um texto reservado a um comício dentro de nossas casas, longe de engenheiros alheios, longe de acidentes naturais, longe de órgãos e técnicos inconvenientes e insensíveis aos apartamentos dentro de nós.

CONCLUSÃO

Ler Italo Bianchi é, pouco a pouco, instrumentalizar-se de plataformas sólidas. A seqüência de suas idéias nos faculta engenharias de composições com nítida progressão. É um Pitágoras sem o uso de recursos naturais da matemática. Sugiro uma primeira leitura corrida e, depois, ir acompanhando os passos que em gradação compõem a unidade ideativa. Assim, encontraremos afirmações seguidas de justificativas. Estas, seguidas de exemplificações. Estas, por sua vez, ligadas a enunciatividades. Ou, também, para apresentar uma outra horizontalidade, iremos nos deparar com afirmação + afirmação + afirmação + exemplificação + exemplificação + exemplificação + comparação + conseqüência + afirmação ( para lembrar o último parágrafo do texto que reservei aqui para leitura: Os cantinhos da casa. Se o olhar é vertical, temos as unidades ideativas da crônica compostas por parágrafos que asseguram partir do espaço extrínseco ao espaço intrínseco, a semelhança de um edifício que, ao desmoronar, nos rouba tudo o que nos circunda e nos refugia sob escombros alheios aos que desesperadamente querem alcançar, mas que são inatingíveis, pois pares e mãos de bombeiros não conseguem chegar lá.

Edvaldo Ferreira1


Ao som de 'É tão simples' - Chico Buarque
Degustando Vinho Tinto Suave
Imagem:'Parker 51' - Dario

1Edvaldo Ferreira, meu mestre e confrade, é professor universitário catedrático em Língua Portuguesa, poeta e escritor.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Sem motivo

Crônica

Você sempre vira as costas quando ainda estou falando. Eu me irrito com sua pressa em me ferir. Despeja mentiras e sai apressada do veneno. Fico sozinho com a minha ansiedade em fazer as pazes.

Provoca para que corra atrás. Corro porque não suporto o vento parando meus ouvidos. Sobe meu sangue, encrespa as veias. Eu levanto a voz para me defender e já diz que estou gritando. Não fiz nada senão erguer a voz para o tom da sua, para que me escute e não somente seu próprio apelo. Tanto faz, agora avisa que estou gritando. Grita que estou gritando. Sua teimosia impede arrependimentos. Agora começou a briga e não voltará atrás, não mostrará humildade para desistir, não aceita recuar, não pedirá desculpa.
Seu orgulho me pressiona, tenta me convencer a todo custo que tem razão. Vai aguardar que eu diga alguma ofensa para inverter os papéis e denunciar que a ofendi. Fareja a insanidade.

Seus olhos zonzos, inofensivos, pescam meus desaforos ao longe. Enganei-me com a doçura. Fixa a minha boca para afastar o beijo, espera o cardume surgir da espuma da raiva.

Contenho-me, busco diminuir o ritmo, usar a calma de adulto que treinei na infância. Não descubro o que está querendo. Não a entendo, permanecia quieto e calmo esperando que voltasse do trabalho: os cabelos ainda se acostumando à noite. Chegou disposta a desalinhar o quarto, cobrando que não atendi o telefonema, mas sequer o ouvi pelo barulho do ar-condicionado. Passa a me xingar para que eu retribua. Dá mais comida aos peixes da minha boca, mais isca, mais ração. Puxo a corda, enganado pela fome. Nossos vizinhos já conhecem o nosso relógio biológico. Não se assustam com os trincos no chão, com sua pontualidade em testar mais uma vez minha paciência.

A briga não oferece sequer um motivo, teve que arrumar desesperadamente um motivo durante a briga para se justificar.
Quando percebe que perderá a disputa, quando se confunde e não responde, inicia seu cinismo. Ameaça procurar um apartamento na próxima semana. Diz que não vai se importar mais comigo. Você é extremista: se não é do seu jeito não será de nenhum. Pode ficar com razão, a razão nada entende de nosso desejo. Nunca entendeu. A razão é o que menos importa ao amor.

Fabrício Carpinejar


Ao som de 'Lost for words' - Pink Floyd
Degustando Café Preto
Imagem:'De uma estação ausente: só, contigo' - Nega Teven

quinta-feira, 17 de maio de 2007

A Bela Azul

Crônica

Como a Terra é bela! Certos estavam os teólogos e astrônomos antigos em colocá-la no centro do universo! Os astrônomos modernos e os geômetras se riram da sua ingenuidade e presunção... Ora, a terra, essa poeira ínfima, perdida em meio a bilhões de estrelas e galáxias centro em torno do qual todo o universo gira?

Mas eles, cientistas, não sabem que há duas formas de determinar o centro. Pode-se determinar o centro com o cérebro e pode-se determinar o centro com o coração. O cérebro mede o espaço vazio com réguas e calculadoras para assim determinar o seu centro geométrico. Mas para o coração o centro do universo é o lugar do amor.

Para o pai e a mãe, qual é o centro de sua casa? Não será porventura o berço onde seu filhinho dorme? E para o trabalhador na roça, cansado e coberto de suor, o centro do mundo não é uma fonte de água fresca? Naquele momento, tudo o mais, que lhe importa? Chove e faz frio. A família inteira se reúne em torno da lareira, onde o fogo crepita. Ali se contam estórias...E sabe o apaixonado que o centro do mundo é o rosto da sua amada, ausente...

O centro do universo para os homens que vivem, amam e sofrem nada tem a ver com o centro geométrico do universo dos astrônomos.

Assim sentiu Deus... Dizem os poemas da Criação que, terminada a sua obra, seus olhos se voltaram não para o infinito dos céus vazios mas para a beleza da Terra. Olhou para o jardim, para suas árvores, pássaros e regatos, e sorrindo disse: "É muito bom!" Sim. É bom porque é belo. A Terra é o centro do universo porque é bela. E a beleza nos faz felizes.

Recebi de um amigo, via Internet, uma série de fotografias da Terra, tiradas de um satélite. Vinha com o nome de "A Bela Azul". Que lindo nome para a nossa Terra! Porque é com a cor azul que ela aparece. Lembrei-me de um verso de Fernando Pessoa: "... e viu-se a Terra inteira, de repente, surgir, redonda, do azul profundo". O filósofo Nietzsche era um apaixonado pela Terra. Dizia que era uma deformação do espírito, num dia luminoso, ficar em casa lendo um livro quando a natureza está lá fora fresca e radiante. É possível imaginar que ele, que proclamou a morte de Deus, tenha secretamente eleito a Terra como seu objeto de sua adoração.

Mas agora anunciam os cientistas que A Bela Azul está agonizante...

Rubem Alves


Ao som de 'Raindrops Keep Falling On My Head' - B.J. Thomas
Degustando Barra de Cereal e Suco de Goiaba
Imagem:'A Bela Azul' - Ismael Alexandrino, a bordo, navegando no mar azul de Goiás

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Angélica

Poesia

Sempre te desejei nua.
Agora que não mais
Por te ter a meio palmo de mim,
A limpidez de tua alma cega-me
E perco, momentaneamente, os sentidos.

Ainda ousam profanar-te!
Não posso admitir tal ignomínia.
Recuso-me ser conivente
Com a dessacralização da arte divina
A despeito de não me tornar maior pecador.

Resta-me admirar tua silhueta
Por finito e pouco tempo
Da vida sã que ainda teima errante
Nas minhas entranhas mais remotas
Sem ousar, sequer, um toque.

Vista-se! Estou resoluto.
Proteja-se deste mundo maculado
Que não merece contemplar-te,
Arqueia tuas asas,
E vai.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Little Room' - Norah Jones
Degustando Quinta do Morgado Tinto Suave com Queijos Finos
Imagem:'Coração Espelhado' - A Brito

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Essa tal liberdade

Poesia


É engraçado como são os homens:
Rezam para se sentirem livres;

Ficam presos a penitências e senões.

São arqueiros de si mesmos

Decanos da moralidade

Escravos das religiões.


Ismael Alexandrino


Ao som de 'Imagine' - John Lennon
Degustando Caipirinha Nevada
Imagem:'Prisão' - Sílvia Nocito

terça-feira, 8 de maio de 2007

Diversidade

Poesia


Carmelitas, bonitas...
Célias, sérias
Adélias, risonhas.

Bromélias, tímidas!
Zélias, rudes
Camélias, tristonhas.

E tu, sem alma,
Talo seco!
Sem pétalas.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Lua e Flor' - Oswaldo Montenegro
Degustando Café Preto
Imagem:'Galho e Flor' - Geraldo Magela

Poema expresso

Poesia

Por que me pedes algo de ímpeto?
Queres me ver de alma desnuda?
Ou, simplesmente desejas
Ver-me em percalços?

Talvez tenhas razão:
Apreciar-me assim, despido,
Pode ser que tenha mais valor
Ou um pouco mais de graça.

Deveras, não sei.
Sei, somente aquilo
Que meus negros olhos
Conseguem ver.

E eles me disseram – há pouco –
Que gostaram, sobremaneira,
Do teu sorriso ligeiro
E doce.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Eu não existo sem você' - Vinícius de Moraes
Degustando Capuccino de Chocolate com Chantilly de Amarulas
Imagem:'Sorriso colorido da Bahia' - Olga Gouvéia

domingo, 6 de maio de 2007

LUTO: Ao Mestre Enéas Carneiro

Homenagem Póstuma

Em 05 de novembro de 1938, nascia um dos maiores homens que este país já conheceu.

Tive o privilégio de ser seu discípulo, seu aluno de medicina, mesmo que brevemente, quando este ministrava – brilhantemente – seu conceituado curso de "Eletrocardiograma" no Rio de Janeiro.

Há muito, eu já o admirava como professor universitário, político exemplo de honestidade, e formador de opinião. Com o convívio pessoal, passei, também, a admirá-lo como pessoa, como ser humano, que se preocupa com o outro, com o seu irmão. Muitos pensavam, talvez pelo tom de voz enérgico e a forma enfática e expressiva dele falar, que ele fosse agressivo ou autoritário. Mas, ao contrário, ele era extremamente pacífico, educado, generoso, e gentil.

Ele amava o conhecimento, amava o Brasil e amava os brasileiros. Angustiava-se com a miséria e com a condição subumana de vida dos seus compatriotas, e dos indivíduos que pereciam por fome, ou por falta de cuidado digno. Tantas vezes o vi esbravejar contra essa condição deplorável de vida. Ele sentia a dor do outro. Condoia-se.

Portador de um caráter ilibado, de uma ética inquestionável, e de uma moral irretocável, procurou dar o melhor de si naquilo que se meteu a fazer, naquilo a que se dedicou. Com formação em medicina, física, matemática e militar, e com estudos na área de filosofia, antropologia, robótica, lógica, geopolítica e ciências sociais, se mostrou como um pensador nato. Agraciado com uma mente brilhante, alegrava-se em compartilhar aquilo que aprendeu com os outros. Em 1998, quando, numa entrevista, lhe informaram que grande parte da população o via como "inteligente e brilhante"
, comentou: "Não é um atributo pelo qual eu tenha mérito nenhum. Foi Deus quem me deu. É como beleza física. Ninguém tem mérito por ser bonito".

Mesmo depois de acometido com uma doença grave e profundamente debilitado, procurava exercer as suas atividades com diligência e otimismo, então como político eleito para a câmara federal.

Militou na política, procurando sempre ser coerente com sua fundamentação ideológica. Inúmeras vezes foi mal-interpretado. Outras, até ridicularizado. Sobretudo, por não fazer o tipo populista ao expor suas opiniões, mesmo aquelas mais polêmicas. Era autêntico, doía a quem doer, e não negociava suas convicções, não traía a sua consciência.

O Brasil, sem dúvida, perde um grande homem, um estandarte, um exemplo de garra
que saiu do Acre aos 9 anos de idade, órfão, para morar no Rio de Janeiro, estudar e sustentar sua família. O país perde um exemplo de determinação, de disciplina, de altruísmo, e de tantos outros adjetivos de qualificação positiva. Eu, no entanto, perco um mestre, um colega, um referencial... Eu perco um amigo.

Fica, para a família Ferreira Carneiro, meu gesto de apoio, de compaixão, de condolências.

Fica, também, meu choro contido, de quem sente profundamente uma perda irreparável.

Fica, sobretudo, o meu reconhecimento sincero, o meu respeito, a minha admiração, a minha homenagem àquele que, para mim, será sempre o imortal Enéas Carneiro.

Em luto,
Ismael Alexandrino


Degustando Lágrimas
Ao som de 'What a wonderful world' - Louis Armstrong
Imagem:'Ismael Alexandrino, Professor Dr. Enéas Carneiro, Drª. Roberta, Dr. Daniel Alexandrino, Dr. Wander, em julho de 2004.' - Ismael Alexandrino

A Hortênsia, essa flor

Poesia


Lembro-me do teu carinho
Feito devagarzinho

No canto do meu coração

Esquerdo.


Que doçura

Aquela candura

De sorriso que esboçaste
Direito!

Empreendeste-me cócegas n’alma

Impregnaste-me bendita calma

De que eu, há tempos, precisava.


"Exagero teu! Por que fui tão libertadora?", dirias.

Porque a fuligem ligeira da cidade
Cega-me, sufoca-me, e me aprisiona,

Remete-me – encarcerado –

A um ritmo desumano,

Mortal.


Bendita, pois, és tu entre as flores,
Hortênsia,
Que de bonito azul claro
Minha vida cinza-pálida
Pintaste.


Ismael Alexandrino



Ao som de 'Give me the reason' - Kirk Whalum

Degustando Café com Licor de Amarulas

Imagem:'Hortências azuis' - Antonio Arruda

sexta-feira, 4 de maio de 2007

(In)fidelidade a dois

Poesia

No primeiro instante de desassossego, um dos “eus” rouba-me a vez na relação.
Saio do ar. Ele me encobre por inteiro. Ignoram-me por completo no outro.
(Sobretudo quem me tem em maior intimidade )
Quão tola ela é em pensar que lhe sou íntimo!
E o meu “eu” ortônimo não lhe diz nada.

Numa segunda abordagem, já se sente íntimo a tudo que o circunda naquela casa.
Ignora todos e, sobretudo, minha companheira que me prende e me assusta.
E calo-me, assistindo a esse “eu” catártico ( libertador ).

Em sua terceira vinda, já o convido para me substituir.
Sou seu telespectador. Aceito-o com simpatia.
Estendo-lhe tapete vermelho. Ele entra em meu quarto.
Ele deita com ela. Ele a possui.
E não lhe reclamo minha ausência.

Ao retomá-la na noite posterior, ela me desdenha.
Já não mais me quer. Prefere-o a mim.
E não lhe digo nada.

Embora emudecido, meu silêncio está em conforto.
Dei-lhe o prazer de um outro, sem que lhe tirasse a fidelidade a mim.
E quantos erram em fazê-la – sua própria esposa - trair seu próprio companheiro
Por não saber ser múltiplo na pluralidade que nos torna um
aos olhos dos míopes – sobretudo de quem deita conosco.

Edvaldo Ferreira1


Ao som de 'A hora íntima' - Vinícius de Moraes
Degustando Café com Tabaco
Imagem:'Décalcoanie' - René Magritte


1Edvaldo Ferreira, meu mestre e confrade, é professor universitário catedrático em Língua Portuguesa, poeta e escritor.

Tempo

Poesia

Como sempre, tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac ,

...um minutinho já passou.
E Alice continua correndo, desta vez atrás do coelho.
e a Floresta canta, tic tac tic tac tic tac tic tac...

E sem tempo ele chora
e de seus olhos caem as horas
e os ponteiros ferem sua pele.


E o coelho fere...

tic tac tic tac ...

o próprio tempo, com sua falta de tempo...tic tac,
e Alice pára, na ponta de uma pedra gigante,
que parecia representar o próprio tempo...

pára e olha todo o seu passado...
e vê espermas espalhados
por todo o vale,
em forma de curumins...

e mais uma vez ouve-se o chôro do abandono,
tic tac tic tac tic tac...


O curumim chora...

tic tac....tic tac...tic tac...tic tac...

Pedro Paulo Rodrigues1



Ao som de 'Metáfora' - Elisa Queiroga
Degustando Água de Coco
Imagem:'A Persistência da Memória' - Salvador Dali


1Pedro Paulo Rodrigues, amazonense, reside em Recife, é artista plástico e poeta.

Fumaça sabor maçã

Poesia
fumaça sabor maçã
O vento quebrou o som
deixando apenas
o silêncio...
gotas do cálice
mel, azulado, profano,
simbiótico,
negro como a noite,
cantando gritos,
ecoando becos...
tirando mais uma
vida...
do lugar comum
aos deuses.
Calo diante
de tamanha
estupidez...
a de saborear
ameixas
ao
entardecer.
Sentado
ao cair tarde,
vendo pequenos
bicos, entoarem
um canto solitário.
O homem que toca
de fraque,
terno meio azulado,
responde ao gato,
sentado
à sua frente,
as horas que
já de tarde,
estigmatizam
a nua lua
cor de prata.
O gato se levanta...
anda...
...e senta-se novamente.
Entrega-se à luxúria,
à preguiça incontida,
num caroço de tucumã.

Pedro Paulo Rodrigues1


Ao som de 'Bandeira' - Zeca Baleiro

Degustando Chá de Canela com Maçã
Imagem:'Lua que me observas...' - Teufel


1Pedro Paulo Rodrigues, amazonense, reside em Recife, é artista plástico e poeta.

terça-feira, 1 de maio de 2007

Humildade

Poesia

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.

Cora Coralina1


Ao som de 'Cio da Terra' - Almir Sater
Degustando Pão de Queijo com Café Preto
Imagem:'Pés Descalços' - Ismael Alexandrino


1Cora Coralina, goiana, foi doceira e poetisa.