Café Alexandrino - O lado aromático da vida

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Teu vício não me ama

Poesia


Não quero o meu amor
Competindo com o teu vício:

O teu vício – enquanto vício –
É pobre, causa-me asco,
Pois te domina, te possui,
Conspurca tua beleza
E tu, abstraída de ti,
Perde tua essência,
Deturpa tua existência.

O meu amor – profundo amor –
É nobre, causa-me ímpeto,
Pois me domina, me possui,
Arrebata-me para ti
E tu, sem entendê-lo,
Perde em não bebê-lo todo,
Abre mão da totalidade de mim.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'A felicidade' - Vinícius de Moraes e Tom Jobim
Degustando lágrimas salgadas
Imagem: 'Pra variar' - Paulo Medeiros

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Posso ir

Poesia

Se me tens como o teu inequívoco amor,
Como o próprio amor encarnado,
Por que não me possuis...
Por que não me possuis assim...
Por que não me possuis assim... carnalmente?

Se me tens todo, a todo tempo,
Em todo tempo teu que roubas de mim,
Por que não me possuis assim...
Por que não me possuis...
Por que não me possuis assim... loucamente?

Se me tens e nisto te comprazes,
Deverias me possuir
Em todo tempo
Todo
Próprio
Amor encarnado.

Se me tens como o teu inequívoco amor,
Se me tens todo, a todo tempo,
Deverias me possuir.
Deverias.
Não deverias.
Não deverias ficar aí, inerte,
A sete mil milhas
A sete léguas
A sete côvados
A sete palmos
A sete dedos
A sete milímetros
A sete camadas de valência
Longe de mim.

Esta perfeita distância que manténs
Que cultivas resguardando-se
Numa inércia sem fim,
Por ora, irrita-me!

Se me tens,
Possua-me
Loucamente
Carnalmente
Incessantemente.

Possua-me assim
Que te possuirei em mim
Loucamente
Carnalmente
In-ces-san-te-men-te
Até a minha ou a tua vida
Dar o último suspiro...
...
E chegar ao
Fim.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'The Art Of The Fugue' - Johann Sebastian Bach
Degustando Torta de Limão
Imagem: 'Par de Flores' - Perchansky

terça-feira, 10 de outubro de 2006

P'ela santa

Poesia


Pequena preta pálida
De periclitantes pestanas pretas
E purpúreos pedaços de pele
Que perjuram perigosas preces,

Pediste-me palavra poética
Que, por ética, decidi postergar.

Posto que sou poeta,
Poetinha peralta pitoresco
Perfurante de pétreos peitos,
Procurei com perícia peripécia
Perimétricas palavras pouco prosaicas
Para, neste poema, poder pintar.

Peguei pedaço de papel,
Pena de pato perfeito pincel,
E, P'ela santa de terras do mar,
Premente, me pus a poetizar.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Samba de um nota só' - Tom Jobim
Degustando Café Preto do Dr. Petrus Silva
Imagem: 'A negra' - Tarsila do Amaral

sábado, 7 de outubro de 2006

Canto de chegada, choro de adeus

Crônica

Em 1998, na minha penúltima eleição para senador, conheci no Amapá uma repórter e apresentadora de televisão simpática, talentosa e inteligente. Era do Maranhão e fora contratada por uma equipe de TV para a campanha eleitoral do Amapá. Sorriso aberto, alegria sempre nos lábios.

Era uma moça negra que transmitia aos telespectadores segurança e uma presença carinhosa. De grande coração, alegre, solidária. Reencontrei-a em São Luís, apaixonada por um jovem antropólogo alemão que estava havia muitos meses embrenhado na selva entre os guajajaras, no interior do Maranhão. Dalva foi para a Alemanha, casou-se, tiveram uma filha, Hannah, que era o encanto do pai. Por ela tinha verdadeira fascinação.

Dalva vivia um conto de fadas na Alemanha, mas seu marido não esquecia dos índios, queria voltar ao seu convívio e aos seus estudos.

Voltaram ao Brasil.

Andréas não desejava que Hannah -alfabetizada em alemão- esquecesse a língua da terra onde nascera, e com ela conversava todas as noites, contando histórias dos lagos de Hamburgo e das bruxas da Baviera. Como no poema de Raul Bopp, longe da pátria, ela ficava no colo e pedia: "Papai, conta-me histórias". Ele foi para o Amazonas e estava feliz porque ia conhecer uma nova tribo no Xingu.

Ligou entusiasmado, anunciou à filha as histórias que iria contar quando chegasse a Brasília no dia seguinte. Metódico, marcou hora: 20 horas e 30 minutos. "Vá me buscar no aeroporto".

Sua filha brincava com outras amigas no pátio do prédio onde mora. Às 16h30, a menina Hannah parou e disse às colegas: "O avião do meu pai explodiu". Todas ficaram curiosas. Hannah não disse mais nada e continuou a brincar.

Dalva foi ao aeroporto receber Andréas. Esperou, foi à companhia aérea e da angústia passou ao desespero. Como dizer à filha? Hannah deve saber tudo. Por que tramas do destino ela soubera que o avião de seu pai tinha explodido? Quando sua mãe em prantos contou-lhe a verdade, ela pediu-lhe para não chorar: "Papai em breve vai voltar".

Essa moça pobre do Maranhão, que lutou para se formar, apaixonou-se, casou, viveu o sonho de um príncipe encantado louro e teve uma princesa loura de cabelos crespos. Seu marido lutou em Kosovo e não morreu.

Vem um Legacy, em rotas de milhares de milhas, e, num segundo, numa entre bilhões de probabilidades, encontra-se com o Boeing em que Andréas sonhava com a sua nova tribo no Xingu, e sua esposa, linda preta de sorriso de extrema simpatia, com o coração de reencontro, encontra-se com as lágrimas do adeus.

Como dizia Drummond: "Mundo, vasto mundo..."

José Sarney

Ao som de 'Paciência' - Elisa Queiroga

Degustando Café Amargo

Imagem: 'Portal do Infinito' - Érico Christmann