Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sábado, 23 de dezembro de 2006

Roupa íntima

Poesia

Tal qual a mulher com uma bela lingerie
É uma flor com belas pétalas aveludadas:
Há beleza para ser admirada à distância,
Há um perfume de doce fragrância,
Mas é em seu interior que guarda
O néctar que emana prazer e vida.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Guarde nos olhos' - Elisa Queiroga
Degustando Capuccino com Chantilly de Menta
Imagem: 'Detalhe' - Fernanda Rossi

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Cante-me

Poesia

Por obséquio,
Cante-me algo
Que me fale
De amor.
De preferência,
-- claro --,
Do teu amor,
Do teu amor por mim
De todo amor teu por mim.
Por mim, e por mais ninguém.

Faça-me o favor
De cantar em sol maior,
Mas me dê recursos,
Dê-me teus relativos altissonantes,
Tua escala diatônica
Para que, mesmo em noite enluarada,
Eu possa, sem dó natural,
Arpejá-la com destreza
E alcançar o teu alto tom
Tal qual o céu
No teu palatino véu.

Faça-me a gentileza
De aquecer minhas
Róseas pregas vocais
Com tua língua ardente,
Ansiosa para ser beijada,
Ensaiada,
Ensinada,
Domada,
Amada.
Faça-me esta sutil gentileza antes,
Para que eu possa ensaiar contigo
Um singular dueto.

Cante-me,
Pois quero tocá-la!
Tocá-la a duas mãos,
Segurando bem em tua
Cintura esbelta,
Deslizando a ponta
Dos meus dedos
Em tuas finas cordas
Afinadas num corpo esguio,
De acústica apreciável
Em ambiente fechado
E a dois,
Antes e depois.

Componha-me em ti...
Isso! Faça-me tua música solene,
Erudita,
Envolvente,
Vibrante...
Vibrante...
Vibrante...

Cante-me em teu ritmo,
No ritmo do fôlego
Que contém teu peito:
Ora devagar,
Piano, pianíssimo,
Ora rápido,
Com duas colcheias de amor por compasso.
Com direito a pausa,
Infle teus dois peitinhos macios
O máximo que puder
E, com profundo gozo,
Cante.

Cante-me!...cante-me...cante-me.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Intuição' - Oswaldo Montenegro
Degustando Capuccino de Chocolate com Chantilly de Menta
Imagem: 'Imagem'- Marta Brito Oliveira

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

Breve retrato de dias sem cor

Crônica

Desde a semana passada, estou quase mudo, silente, sem cor. Em uns daqueles dias em que meus passos são para trás. Não sinto dores físicas, mas a tristeza aguda, que vezes em vezes teima em me acompanhar, sentou-se ao meu lado. Insisto para que vá embora. Ela resiste. Esses últimos dias não me fizeram nenhum sorriso de luz, nem de brisa; ando desde o amanhecer com essa dificuldade de respirar, ando mesmo desarmado, apenas com o ânimo necessário para, pelo menos, sobreviver. Confesso que são nessas horas que tenho vontade de devolver minha fé.

Sofro de indelicadezas que não me fizeram. E também das que me fizeram injustamente. Nenhuma visita me agradaria; ou melhor, apenas uma. Alegrar-me-ia bastante. Nesses recentes dias anuviados e tristonhos, amigo nenhum me faria falta. Que martírio inglorioso se precipita sobre mim! Faço perguntas. Quem me trouxe essas sensações de que, daqui por diante, momentos infelizes me aguardam? Não raro, ocorre-me uma resposta parcial: eu mesmo! Isso é preocupante e constrangedor. Como consigo ser trágico comigo mesmo algumas vezes!

Meu peito se oprime, nele habita uma dor que me acusa, que rasga minhas vísceras, que me mata psicologicamente. Tenho vontade de segurar meu coração, de protegê-lo. Verdade, não minto, incompreensivo leitor. Por acaso você já sentiu necessidade de ser menos humanista, mais hipócrita e por vezes incoerente? Se já sentiu, talvez compreenda o que está a ler, pois o preço da não-hipocrisia e da coerência é caro, caríssimo, sobretudo nos dias de hoje... Quiçá impagável. Confesso que nesses instantes penso em acompanhar o senso comum, em renunciar a alguns princípios e ideologias. Ou ao menos em conferir-lhes um significado tão pragmático e comum quanto simplório e pouco elogiável.

Sei exatamente do que falo. Ainda me restou lucidez para isso. Só não sei se é válido explicar a vocês, hoje indiferentes leitores, aquilo que provavelmente não entenderiam. No máximo, compreenderiam, no máximo. Por isso, dispenso os esclarecimentos. Nem queria redigir mesmo. Faço-o porque é uma das pouquíssimas maneiras pelas quais ainda me sinto vivo. Esses dias têm sido dolorosos; não pela dor física que agora não sinto, mas pelo "inexplicável" estranho que dentro de mim luta comigo, zomba de mim, entristece-me e me empalidece, e que, hoje, me venceu uma vez mais.

Tenho estado sem razões, sem motivos... Dizem, entretanto, que depois da tempestade vem a calmaria (bonança). Sei que isso é verdade. Só não sei se consigo esperá-la, sem gravames nem perdas irreparáveis.

Yuri Brandão


Ao som do Silêncio
Degustando Torta de Limão
Imagem: 'Tristeza' - Ruibebiano

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Teu vício não me ama

Poesia


Não quero o meu amor
Competindo com o teu vício:

O teu vício – enquanto vício –
É pobre, causa-me asco,
Pois te domina, te possui,
Conspurca tua beleza
E tu, abstraída de ti,
Perde tua essência,
Deturpa tua existência.

O meu amor – profundo amor –
É nobre, causa-me ímpeto,
Pois me domina, me possui,
Arrebata-me para ti
E tu, sem entendê-lo,
Perde em não bebê-lo todo,
Abre mão da totalidade de mim.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'A felicidade' - Vinícius de Moraes e Tom Jobim
Degustando lágrimas salgadas
Imagem: 'Pra variar' - Paulo Medeiros

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Posso ir

Poesia

Se me tens como o teu inequívoco amor,
Como o próprio amor encarnado,
Por que não me possuis...
Por que não me possuis assim...
Por que não me possuis assim... carnalmente?

Se me tens todo, a todo tempo,
Em todo tempo teu que roubas de mim,
Por que não me possuis assim...
Por que não me possuis...
Por que não me possuis assim... loucamente?

Se me tens e nisto te comprazes,
Deverias me possuir
Em todo tempo
Todo
Próprio
Amor encarnado.

Se me tens como o teu inequívoco amor,
Se me tens todo, a todo tempo,
Deverias me possuir.
Deverias.
Não deverias.
Não deverias ficar aí, inerte,
A sete mil milhas
A sete léguas
A sete côvados
A sete palmos
A sete dedos
A sete milímetros
A sete camadas de valência
Longe de mim.

Esta perfeita distância que manténs
Que cultivas resguardando-se
Numa inércia sem fim,
Por ora, irrita-me!

Se me tens,
Possua-me
Loucamente
Carnalmente
Incessantemente.

Possua-me assim
Que te possuirei em mim
Loucamente
Carnalmente
In-ces-san-te-men-te
Até a minha ou a tua vida
Dar o último suspiro...
...
E chegar ao
Fim.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'The Art Of The Fugue' - Johann Sebastian Bach
Degustando Torta de Limão
Imagem: 'Par de Flores' - Perchansky

terça-feira, 10 de outubro de 2006

P'ela santa

Poesia


Pequena preta pálida
De periclitantes pestanas pretas
E purpúreos pedaços de pele
Que perjuram perigosas preces,

Pediste-me palavra poética
Que, por ética, decidi postergar.

Posto que sou poeta,
Poetinha peralta pitoresco
Perfurante de pétreos peitos,
Procurei com perícia peripécia
Perimétricas palavras pouco prosaicas
Para, neste poema, poder pintar.

Peguei pedaço de papel,
Pena de pato perfeito pincel,
E, P'ela santa de terras do mar,
Premente, me pus a poetizar.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Samba de um nota só' - Tom Jobim
Degustando Café Preto do Dr. Petrus Silva
Imagem: 'A negra' - Tarsila do Amaral

sábado, 7 de outubro de 2006

Canto de chegada, choro de adeus

Crônica

Em 1998, na minha penúltima eleição para senador, conheci no Amapá uma repórter e apresentadora de televisão simpática, talentosa e inteligente. Era do Maranhão e fora contratada por uma equipe de TV para a campanha eleitoral do Amapá. Sorriso aberto, alegria sempre nos lábios.

Era uma moça negra que transmitia aos telespectadores segurança e uma presença carinhosa. De grande coração, alegre, solidária. Reencontrei-a em São Luís, apaixonada por um jovem antropólogo alemão que estava havia muitos meses embrenhado na selva entre os guajajaras, no interior do Maranhão. Dalva foi para a Alemanha, casou-se, tiveram uma filha, Hannah, que era o encanto do pai. Por ela tinha verdadeira fascinação.

Dalva vivia um conto de fadas na Alemanha, mas seu marido não esquecia dos índios, queria voltar ao seu convívio e aos seus estudos.

Voltaram ao Brasil.

Andréas não desejava que Hannah -alfabetizada em alemão- esquecesse a língua da terra onde nascera, e com ela conversava todas as noites, contando histórias dos lagos de Hamburgo e das bruxas da Baviera. Como no poema de Raul Bopp, longe da pátria, ela ficava no colo e pedia: "Papai, conta-me histórias". Ele foi para o Amazonas e estava feliz porque ia conhecer uma nova tribo no Xingu.

Ligou entusiasmado, anunciou à filha as histórias que iria contar quando chegasse a Brasília no dia seguinte. Metódico, marcou hora: 20 horas e 30 minutos. "Vá me buscar no aeroporto".

Sua filha brincava com outras amigas no pátio do prédio onde mora. Às 16h30, a menina Hannah parou e disse às colegas: "O avião do meu pai explodiu". Todas ficaram curiosas. Hannah não disse mais nada e continuou a brincar.

Dalva foi ao aeroporto receber Andréas. Esperou, foi à companhia aérea e da angústia passou ao desespero. Como dizer à filha? Hannah deve saber tudo. Por que tramas do destino ela soubera que o avião de seu pai tinha explodido? Quando sua mãe em prantos contou-lhe a verdade, ela pediu-lhe para não chorar: "Papai em breve vai voltar".

Essa moça pobre do Maranhão, que lutou para se formar, apaixonou-se, casou, viveu o sonho de um príncipe encantado louro e teve uma princesa loura de cabelos crespos. Seu marido lutou em Kosovo e não morreu.

Vem um Legacy, em rotas de milhares de milhas, e, num segundo, numa entre bilhões de probabilidades, encontra-se com o Boeing em que Andréas sonhava com a sua nova tribo no Xingu, e sua esposa, linda preta de sorriso de extrema simpatia, com o coração de reencontro, encontra-se com as lágrimas do adeus.

Como dizia Drummond: "Mundo, vasto mundo..."

José Sarney

Ao som de 'Paciência' - Elisa Queiroga

Degustando Café Amargo

Imagem: 'Portal do Infinito' - Érico Christmann

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

O amor: promessa e dúvida

Ensaio


Amor é uma palavra que hoje precisamos usar com cuidado. Para os poetas, é uma palavra bonita, para os conquistadores (sexuais ou religiosos), é estratégica. De outro lado, é sincera tanto quanto é confusa, para muitos amantes que, adolescentes ou maduros, se perdem em suas promessas. Não há amor sem promessa de felicidade, já dizia o escritor francês Stendhal. Amantes são aqueles que vivem em nome do amor, que o praticam à procura de um ideal de felicidade que só o amor parece realizar. Quem acredita nisso pode bem ser chamado de romântico.

Para os descrentes, porém, os que desistiram de amar, amor não passa de uma palavra em desuso. Algo nela pode soar a pieguice ou sentimentalismo. Melhor deixá-la de lado, pensa o decepcionado. O amor, para muitos, está fora de ordem. E, por isso, fora de moda e mesmo algo banal.

Além daquele que olha o amor com a dor que lhe restou, há alguém que ainda crê no amor, ainda que seja seu crítico. Talvez o amor não tenha sido a parte feliz de sua sina e é melhor analisá-lo racionalmente como qualquer objeto. Nele pesa a voz de ilusão do amor como uma promessa ideal. Algo que faz duvidar dele. Ainda que ao duvidar se esteja buscando chegar, de algum modo, perto do amor. Só a dúvida poderia nos levar a ter esperança de chegar à certeza. Pois o que há de mais certo sobre o amor é justamente a incerteza. Mesmo assim, pensar nele é um prazer mais que romântico.

Talvez o amor sobre o qual tanto falamos esteja hoje longe de nós à medida que confundimos a riqueza da expressão amor com a paixão propriamente dita. Falta-nos atenção ao amor quando o confundimos com a simples paixão, que é o desejo autoritário e desenfreado por uma coisa ou pessoa. É como se o amor fosse algo que nos toma e que não podemos compreender, quando muito podemos ter sorte com ele, ou aceitar o sofrimento, a dor com cuja rima já não podemos deixar de vê-lo.

Márcia Tiburi


Ao som de 'Só pro meu prazer' - Leoni
Degustando Uvas Roxas Geladas
Imagem: 'Uma linda manhã' - Guilherme Fávaro

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Clores

Poesia

Clores

D'antes, tínheis n'alma
Óleo, tela e pincel
Éreis plásticos, belos,
Detínheis elos não estáticos,
Singelos gestos não apáticos.

D'antes, tínheis n'água
Substância límpida a sorver,
Saciável e nobre bebida
De insaciáveis e puros lábios
Saciáveis, entretanto, um n'outro, e tanto.

D'antes, tínheis n'aquarela
Rosa-rósea o rosto corado,
O branco não era amarelado,
Não tinha gosto de fel,
E o amarelo era adocicado
Como o mais dulcíssimo mel
Tão contagiante e bonito,
Tal qual o azul do céu.
E o céu da boca vermelha,
Aquecido de um sol tropical
Não adjacia de lábios fendidos,
Feridos de um inverno infernal.

D'antes,
Tínheis
Pintados reais sorrisos no rosto,
Éreis
De arte, obra de fina apreciação,
Detínheis
Cores de todo espectro da visão.

D'antes,
Perto longe demais.
N'água rara derramastes a tela,
Misturando óleo n'aquarela,
Desfazendo cor, cores,
Despintando flor, flores,
Pintando, agora, n'alma longe,
Clores e alguns ais.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'The blower's daughter' - Damien Rice
Degustando Trufas de Uva com Vinho
Imagem: 'Sem título' - Ismael Nery

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Simbiose

Poesia

Ó princesa dos meus sonhos!
Deveras chegaste sem avisar...
Falando delicada, baixinho,
Tu vieste ao meu coração conquistar.

Tua perfeição não cabe em palavras,
Pois estas se constrangem
Diante da condição de anjo que és.
Tua feição está acima da própria beleza
Sem que isso conspurque o teu coração,
Teu amor é pedido único do cardápio
Do mais refinado que sonhei.

Contudo, é amor de insondável valor
Muito mais que mereço.
É amor que com amor se paga,
É vida a ser eternamente dedicada.

Sendo assim, tu terás minha vida como preço!
Terás muito mais que meu amor:
Serei um anjo conspirando ao teu favor!
A te esclarecer os ensejos
Para te suprir os desejos,
Para compartilhar do verdadeiro amor.

Se te amo, é porque tu me fizeste te amar assim;
Se me amas, é porque tu és metade de mim.
Então nada melhor que meu amor
Alimentar e nutrir o teu
E o teu, partilhar, nutrir e alimentar o meu.

Logo vês, meu anjo lindo,
Que, como precisas de mim,
Também preciso de você
Pois, como dizia Vinícius,
"Não existo sem você e você não existe sem mim".

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Chega de Saudade' - Vinícius de Moraes
Degustando Doce de Leite
Imagem: 'Urupê' - Cláudia Rog

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Só de sacanagem

Crônica


Meu coração está aos pulos! Quantas vezes minha esperança será posta à prova? Por quantas provas terá ela que passar? Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam entupidas de dinheiro, do meu dinheiro, que reservo duramente para educar os meninos mais pobres que eu, para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e eu não posso mais.

Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança vai ser posta à prova? Quantas vezes minha esperança vai esperar no cais? É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o aprendiz, mas não é certo que a mentira dos maus brasileiros venha quebrar no nosso nariz.

Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó e dos justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolva o lápis do coleguinha", " Esse apontador não é seu, minha filhinha". Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido que escutar. Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lógica ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao culpado interessará.

Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar. Só de sacanagem! Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo o mundo rouba" e eu vou dizer: Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.

Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau. Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? IMORTAL! Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final!

Elisa Lucinda


Ao som de 'Luís Inácio (300 Picaretas)' - Paralamas do Sucesso
Degustando Queijo Assado com Água
Imagem: 'The Thief (O Ladrão)' - Francis Aiés

domingo, 3 de setembro de 2006

Amante

Poesia



Tu só me queres devasso?
Por acaso, é o que almejas?
Queres sugar do meu âmago
Tudo que foi construído
Ao longo de anos e anos
De sonhos e idealizações?
Que lucro terias, Pequena,
Senão a devassidão na noite
E, ao amanhecer, a solidão?

Até quando devasso me queres?
Até escorrer todo desejo
Em gotículas de suor
Por entre teus seios macios?
Até tremular freneticamente
As nádegas em chamas
Com pausas abruptas de calafrios?
Até o último suspiro úmido?

Que te fazes assim?
Por que anseias que eu esteja
Liricamente em baldo, sem verso,
Sem qualquer feição de amor?

Mereces-me, realmente,
Somente pela noite, em profunda escuridão.
Ao acordares, te encontrarás em pele nua
Absorta em traidora lascívia,
Revestida de amargura,
Desprovida de amor,
E abraçada com a solidão.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'A carne é fraca' - Martinho da Vila
Degustando Vinho do Porto com Queijo Gouda
Imagem: 'Amante' - Alfonso Prellwitz

terça-feira, 29 de agosto de 2006

Angústia de quem ama

Poesia

Por um momento, bateu-me tristeza,
Fiquei com o meu coração na mão.
Brotou-me sutil engasgo na garganta,
Senti uma angustiante emoção.

Por outro momento, senti que o meu
Amor ela o queria recusar.
Não quis acreditar, pois tanto amor
Senti. Não!...não acabaria ali.

Mesmo assim, me senti em suspensão...
Voltei ao meu refúgio, ao meu canto;
Conversei com meu DEUS em oração.

Enquanto o fazia, visualizei
Realidade que tanto sonhei...
Na mesa de estudo, -- só,-- cochilei.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Essa mulher' - Elis Regina
Degustando Suco de Uva
Imagem: 'Ensayo a la tristeza' - Sarelisa

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Elegância

Crônica


Existe uma coisa difícil de ser ensinada e que, talvez por isso, esteja cada vez mais rara: a elegância no comportamento.

É um dom que vai muito além do uso correto dos talheres e que abrange bem mais do que dizer um simples obrigado diante de uma gentileza. É a elegância que nos acompanha da primeira hora da manhã até a hora de dormir e que se manifesta nas situações mais prosaicas, quando não há festa alguma nem fotógrafos por perto. É uma elegância desobrigada. É possível detectá-la nas pessoas que elogiam bem mais do que criticam. Nas pessoas que escutam mais do que falam. E quando falam, passam longe das fofocas, das pequenas maldades ampliadas no boca a boca. É possível detectá-las nas pessoas que não usam um tom superior de voz ao se dirigir afrentistas. Nas pessoas que evitam assuntos constrangedores porque não sentem prazer em humilhar os outros. É possível detectá-las em pessoas pontuais.

Elegante é quem demonstra ter interesse por assuntos que desconhece, é quem presenteia fora das datas festivas, é quem cumpre o que promete e, ao receber uma ligação, não recomenda a secretária que pergunte antes quem está falando e só depois manda dizer se está ou não. Oferecer flores é sempre muito elegante. É elegante não ficar espaçoso demais. É elegante você fazer algo por alguém, e este alguém jamais saber que você teve que se arrebentar para o fazer. É elegante não mudar seu estilo apenas para se adaptar ao outro. É muito elegante não falar em dinheiro em bate-papos informais. É elegante retribuir carinho e solidariedade. É elegante o silêncio, diante de uma rejeição.

Sobrenome, jóias e nariz empinado não substituem a elegância do gesto. Não há livro que ensine alguém a ter uma visão generosa do mundo, a estar nele de forma não arrogante. É elegante a gentileza... atitudes gentis falam mais que mil imagens... Abrir a porta para alguém... é muito elegante. Dar o lugar para alguém sentar... é muito elegante. Sorrir, é sempre muito elegante e faz um bem danado para a alma. Oferecer ajuda... é muito elegante. Olhar nos olhos ao conversar, é essencialmente elegante. Pode-se tentar capturar esta delicadeza natural pela observação, mas tentar imitá-la é improdutivo. A saída é desenvolver em sí mesmo a arte de conviver, que independe de status social: é só pedir licencinha para o nosso lado brucutu, que acha que "com amigo não temos que ter estas frescuras". Se os amigos não merecem uma certa cordialidade, os inimigos é que não irão desfrutá-la.

Educação enferruja por falta de uso. E, detalhe: não é frescura.

Toulouse Lautrec


Ao som de 'Gentileza' - Adriana Calcanhoto
Degustando Café Preto com Raspas de Canela
Imagem: 'En Canot sur l'Epte' - Claude Monet

sexta-feira, 7 de julho de 2006

Férias, Inverno, Café e Livros

Indicações


Julho para muitos é sinônimo de descanso. Anseia-se pelas esperadas e merecidas férias. Em grande parte do país, faz um friozinho gostoso, com cheiro de café quente feito com grãos moídos e torrados na véspera. Tende-se ao recolhimento buscando o aconchego. Devidamente aconchegado, com tempo disponível e namorando o silêncio, é natural -- para os amantes da leitura -- a busca por bons livros.

Pensando nisso e na comodidade dos amigos, com a preciosa ajuda do escritor brasileiro Luiz Ruffato, o Café Alexandrino™ preparou algumas sugestões de livros que poderão ser lidos neste inverno.

Café Alexandrino™ ...a delícia de viver, promovendo o bem-estar e a cultura, indica:

- Dom Quixote de La Mancha
Miguel de Cervantes Saavedra, ed. Revan

Eleito em 2002 o melhor livro de todos os tempos, um feito nada desprezível para um autor de língua espanhola num mundo dominado pela cultura inglesa, a aventura criada por Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) está de tal forma incorporada ao nosso dia-a-dia, que nem nos damos mais conta de que nascem dele expressões como "quixotesco", "lutar contra moinhos de vento", "cavaleiro da triste figura", "fiel escudeiro"... Desde seu lançamento, em 1605, a história do sonhador Dom Quixote que sai pelo mundo em combate contra a "corrupção dos costumes" foi amada pelo público, a tal ponto que dez anos depois, em 1615, ganhou um segundo volume. O êxito desta paródia das novelas de cavalaria só tem crescido desde então - seja pelo seu humor, ora escrachado, ora sofisticado, seja pela extrema contemporaneidade de suas críticas à mediocridade e ao imediatismo. (Nas livrarias, o leitor se depara com várias edições: luxuosa, com ilustrações de Salvador Dalí pela Planeta; bilíngüe, em tradução de Sergio Molina para a Editora 34, ainda no primeiro volume; em dois volumes, pela L± ou em três, com ilustrações de Gustave Doré, pela Ediouro; em papel-bíblia, pela Nova Aguilar; ou a avalizada pelo Instituto Cervantes, ainda em primeira parte, tradução de José Luís Sánchez e Carlos Nougué, pela Record - além de adaptações para quadrinhos, cordel...).


- As Flores do Mal
Charles Baudelaire, ed. Nova Fronteira

Essa obra-prima da literatura universal foi sendo construída verso a verso durante toda a vida do francês Charles Baudelaire (1821- 1867). Talvez possamos sintetizar toda a preocupação de sua obra no primeiro e último versos do primeiro poema do livro, intitulado "Ao leitor", em que Baudelaire assinala as suas preocupações principais, "a tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez" e conclama-nos, "hipócrita leitor, meu igual, meu irmão", a vencer o "monstro delicado" do Tédio. Ao longo de quase 700 páginas, magistralmente traduzidas por Ivan Junqueira, vamos nos surpreendendo pela sua capacidade de percepção da modernidade - o "eu" lírico que deixa de cantar o herói para se encantar com o anti-herói que somos todos.



- Livro das mil e uma noites
Anônimo, ed. Globo


À parte a importância para o imaginário ocidental das edições Galland (francesa) e Burton (inglesa), pelas quais o leitor brasileiro teve acesso a esse clássico da literatura árabe, agora se sobrepõe a tradução de Mamede Mustafa Jarouche, direta do original, cujos dois primeiros volumes ("ramo sírio") acabam de ser publicados. Mesmo quem nunca leu conhece o enredo do cruel rei Sahriar (Xahriár) que, traído pela esposa, perde a confiança no gênero feminino e, para aplacar sua revolta, casa-se a cada dia com uma mulher diferente, que condena à morte na manhã seguinte. Até que Sarãzãd (Xahrazád ou "Xerazade") se propõe a acabar com o morticínio, por meio de uma sofisticada artimanha: na noite de núpcias inicia uma história que, devido ao adiantado da hora, não pode acabar, obrigando o monarca a conceder mais tempo para terminá-la, e as fábulas se sucedem, noite após noite, até estancar o ódio do seu coração.
Leia mais aqui Adquira o livro


- As Crônicas de Nárnia
Clive Staples Lewis, ed. Martins Fontes

As Crônicas de Nárnia são uma série de livros infantis escrita por C.S. Lewis que conta as aventuras que ocorrem em uma terra fictícia denominada Nárnia. Nesta terra animais podem falar, criaturas mitológicas estão em todo lugar e o bem combate o mal. As histórias contém aspectos do Cristianismo apresentadas de forma sutil juntamente com algumas idéias do autor. Um dos personagens mais importantes da história, o leão Aslam, representa Jesus Cristo, está presente em todos os livros ao longo da série.


- Crime e Castigo
Fiódor Dostoievski, Editora 34


Publicado em 1866, é, dentre a vasta obra do russo Fiódor Dostoievski (1821-1881), uma das mais conhecidas. Dividido em duas partes, a primeira conta a história do pobre estudante Raskólnikov pelas ruas de São Petersburgo, cidade-síntese de toda a Rússia czarista, na qual convive com a miséria física e moral de sua época. Influenciado por estranhas idéias místicas, assassina duas mulheres para roubar jóias, confessa o crime e é condenado ao desterro. A segunda parte transcorre nas paisagens geladas da Sibéria, onde, por meio do castigo, Raskólnikov busca a redenção. A tradução, direta do russo, é de Paulo Bezerra.


- O Som e a Fúria
William Faulkner, ed. Cosac Naify


Prêmio Nobel de Literatura de 1949, William Faulkner (1897- 1962) radicaliza, nesse romance de 1929, seu processo narrativo, buscando penetrar no recôndito da alma atormentada de seus personagens, membros da decadente família de brancos escravocratas do sul dos Estados Unidos, os Compson. Aqui, as quatro datas (blocos) em que se divide o romance - 7 de abril de 1928, 2 de junho de 1910, 6 de abril de 1928 e 8 de abril de 1928 -, mais que demarcar o tempo, servem para implodi- lo, expondo com profunda originalidade os segredos e as culpas de uma sociedade violenta e cruel - numa magistral tradução de Paulo Henriques Britto.
Leia mais aqui Adquira o livro


- Grande Sertão: Veredas
João Guimarães Rosa, ed. Nova Fronteira

Monumento da língua portuguesa, que neste ano completa 50 anos de publicação, esse romance pode até ser lido como uma história de jagunços no interior de Minas Gerais -- e até mesmo pode ser considerada "obra regionalista": a genialidade de João Guimarães Rosa (1908-1967) impõe a multiplicidade das leituras. Uma delas, com a qual mais me identifico: Grande sertão: veredas é a narrativa da institucionalização da violência no Brasil, através das memórias de Riobaldo Tatarana.
Leia mais aqui Adquira o livro

Ismael Alexandrino

Ao som de 'I've Got A Crush On You' - Rod Stewart
Degustando Café Preto
Imagem: Logomarca do Café Alexandrino?

quarta-feira, 28 de junho de 2006

Esporte e Violência: uma combinação nada perfeita

Redação Dissertativa


A mídia já veiculou várias matérias referentes à violência dentro dos estádios de futebol, esclarecendo que, se nesses locais houvesse maior segurança e reinasse a paz, os clubes poderiam lucrar quase 50% a mais do valor atual, sem falar que muitas famílias que só não freqüentam tais ambientes por medo dos inúmeros atos violentos que assumiram a cotidianidade do normal poderiam ali encontrar um entretenimento.

E ontem, em plena Copa do Mundo, quando se espera o mínimo de respeito, quer por quem joga, quer pelos torcedores e telespectadores, Portugal e Holanda deram um "show"... De pancadaria.

Pensando nesse tema de suma importância, resolvemos elaborar uma redação dissertativa acerca da intrigante questão:
o esporte, e enfaticamente o futebol, contribui para desenvolver a amizade ou a rivalidade entre os povos?


O esporte, desde os tempos clássicos, sempre teve como escopo o congraçamento entre os povos. Nutrir uma mente sã num corpo sadio era notável ideário que contribuía para o melhoramento das raças (ou de uma única raça, a humana, como preferem alguns) e união de todos. Contudo, hodiernamente, se assiste a competições esportivas que têm propiciado um triste clima de violência, quer por desavenças partidárias, quer por intrigas políticas, quer por picuinhas pessoais.

Nesse sentido, vive-se a época da banalização da violência. No decorrer de eventos internacionais, por exemplo, é comum o confronto hostil dos atletas que guardam sentimento de rivalidade pelos mais variegados motivos. Parece estar em jogo a superioridade econômica ou histórica dessas nações.

Mas não apenas em nível mundial se torna evidente essa disputa inferior e antiesportiva. O mesmo espírito de guerra é encontrado entre os pequenos e grandes clubes nacionais. Ninguém desconhece o fenômeno das torcidas organizadas, verdadeiramente beligerantes dentro e fora dos campos de competição.

Ultimamente, esse espírito agressivo filiou-se ao esporte de modo regional e universal. Não raro, aqui e acolá eclode uma contenda entre jogadores ou torcedores ou, ainda, entre ambos. A brutalidade, a estupidez e a incivilidade ganham proporções absurdas, de tal sorte que os mais exaltados, muitas vezes, são presos ou mesmo mortos a pauladas e a tiros.

A contrario sensu, é relevante que se registre o fato de que o exercício do esporte também propicia momentos "harmoniosos" e de relativa paz. Recentemente, em 2003, palestinos e israelenses compartilharam juntos (pasmem!) do jogo "Brasil versus Inglaterra" em considerável tranqüilidade; entretanto, é bem verdade que, após este, cessou-se a calmaria, a concórdia.

É deveras lamentável, pois, que um ideal inicialmente tão nobre inverta-se em páginas de violência e crônicas policiais. Quando não domina a emoção, o homem é capaz de regredir ao nível dos irracionais. E, nesse calor, queima-se toda razão e fenecem os ideais mais salutares.

Yuri Monteiro Brandão


[1] Este texto foi publicado no Blog Cultural Textos & Contextos, pertencente ao autor.
[2] Yuri Monteiro Brandão, aos 22 anos, está acadêmico do 4º ano de Direito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), estudante de Filosofia e Línguas (latim, grego e italiano) do Seminário da Arquidiocese de Maceió, ex-secretário de finanças do Diretório Central dos Estudantes Zumbi dos Palmares, ex-monitor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Impacto Curso, tradicional curso pré-vestibular da capital alagoana, ex-trainee jurídico por Motta e Soares Advocacia & Consultoria, ex-colunista do jornal Primeira Edição e colunista do "O Jornal". É também parceiro do "Amigos do Livro", do Grupo Editorial Scortecci, e colaborador do site Releituras, seção "Novos Escritores".


Ao som de 'É uma partida de futebol' - Skank
Degustando Chá Mate com Rosquinha Frita
Imagem:

terça-feira, 13 de junho de 2006

Com licença, vou amar...

Crônica









Em tempos hodiernos, muito se fala sobre o amor. Pouco amor se vive. É tema bonito, politicamente correto, alimenta o comércio, é letra de música em diversos ritmos, mas poucos -- poucos! -- têm o privilégio de vivê-lo de forma integral.

Viver o amor não é fácil. Exige renúncia, condicionamento, disciplina, esmero, doação. Viver o amor demanda, inclusive, tempo. Ah!, mas tempo é dinheiro, diriam alguns. Tudo bem, mas não há dinheiro no mundo que consiga comprá-lo. Amor não é dinheiro, seu valor é outro, muito acima de coisas compráveis, mesmo as que, supostamente, são bens duráveis.

Já ouvi dizer que sou sonhador demais, que vivo fora da realidade, que chego a ser besta, careta, pois amor não existe. Amor entre um homem e uma mulher, segundo os que ousam teorizá-lo nos bares da vida, não passa de tesão, ou melhor, ereção. O amor, neste caso, terminaria com ejaculação. Fico pensando quão seria efêmero se fosse assim. Já pensou nos que têm ejaculação precoce? E os brochas impotentes? Coitados! Estes, com certeza, nunca amariam ou seriam amados. Fidelidade coexistir com amor então, aí já é pedir demais. Para muitos -- quase todos --, é a utopia máxima que, porventura, possa existir.

Seria eu o utópico em pessoa? Não! Não mesmo! Sou um privilegiado, admito. Sou um dos únicos, sou um dos últimos. E o meu amor, no sentido de alma gêmea, ter uma pessoa amada, não é genérico. Meu amor tem nome, registro de nascimento e endereço fixo. Responde pelo nome de origem francesa "ILA", e guarda em seu significado "ilha". Não porque seja cercada de água por todos os lados, mas talvez porque ela seja cercada pelo meu amor por todos os lados e de todas as formas possíveis: eros, frater, philos, ágape.

O amor existe sim e não me interessa quem o desacredite e me veja como um sonhador ufano. Sou sonhador mesmo, pois tenho inúmeros motivos para sonhar, para viver, para regozijar naquilo que me foi concedido de graça. Não me importo em tentar definir o amor, muito menos criar uma cartilha de ditames. Ele não é teórico, é puramente prático e só se aprende amando. Importa-me, tão somente, senti-lo e vivê-lo, pois ele existe.

Com licença, vou amar...

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Você é linda' - Caetano Veloso
Degustando Romeo e Julieta
Imagem: Presentes que ganhei no dia dos namorados

terça-feira, 6 de junho de 2006

O Pescador de Sonhos

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Conto


Todos diziam agora que Roberto era um homem diferente. Mas não era por nada que se apercebesse pela estética ou por qualquer coisa do tipo, mas sim por seu comportamento. Freqüentemente Roberto saía bem cedinho em seu barco dizendo que ia pescar. Passava o dia todinho em alto-mar e só voltava ao final da tarde. O que era estranho é que Roberto não voltava mais da pescaria com um peixe sequer. Como Roberto antes era tido como um dos melhores pescadores da vila, chamavam-no até de "o farejador de peixe", todos começaram a estranhar essa súbita "maré baixa" de Roberto.

Paralelamente à maré baixa de Roberto, ele começou a se apresentar estranhamente mais alegre. Antes sempre duro, bruto até, poderia-se dizer que agora Roberto sorria abertamente para todos os lados. Era freqüente ao retornar da pescaria, sentar-se um pouquinho e contar algumas "histórias de pescador" para as criancinhas que sempre circulavam pela marina ao fim da tarde. Elas o ouviam atentamente e tinham um carinho todo especial agora por aquele 'pescador diferente', como elas o chamavam. Até mesmo em casa, Dona Maria, sua esposa, o achou estranhamente mais comunicativo, dando mais atenção à família e aos filhos, de quem antes sempre mantivera certa distância.

Ninguém sabia o que tinha acontecido a Roberto para ele agora se portar daquele jeito. O tempo foi passando e alguns comentários foram surgindo. Seu Zé da mercearia achava que aquela 'maré baixa' de Roberto era coisa da idade que ia chegando e a habilidade que em conseqüência estava indo embora. Pedro de Cida, freqüentador assíduo da Bodega do Joaquim, dizia que ele estava ficando era louco, por isso não sabia mais pescar. Seu Joaquim, por sua vez, dizia que aquilo era sim coisa do demônio, que ele devia era ter mexido com o que não presta para estar com esse azar. Dona Maria, entretanto, não pensava em nada disso, em nenhum momento tentou entender o que tinha acontecido com seu marido, só começava a se angustiar com o dinheiro que estava indo embora e nada de o marido voltar ao normal. Mas, certo dia, após repensar todas essas idéias que ouvia sobre seu marido na rua, ela não agüentou e disse:

- Ô homem, o que é que tu tem que tu num volta mais com peixe das tuas pescarias? Tu arrumasse outra família e tas levando o peixe pra eles é? Num tá vendo que o dinheiro já não esta dando nem pra comprar comida?

E Roberto respondeu calmamente:

- Maria, eu sei que a situação tá engrossando, mas tenho fé que tudo vai passar e melhorar.

- Melhorar como se tu num pesca mais nada? Ou se o que tu pesca tu tá levando pros outros?

- Maria, não sei se você percebeu o quanto eu mudei de uns tempos pra cá. Em nenhum momento você chegou pra conversar comigo ou me questionar. Preferiu juntar tudo e explodir de vez com essa mágoa, me julgando e me acusando como você está fazendo agora. Foi por isso que não notou que todos os dias eu saia com meu barco não com redes de pesca, mas sim carregado de tabuas. Essas tábuas, Maria, era para construir o meu sonho, um sonho de uma vida melhor para a gente, era para construir um grande cercado de peixes onde pudéssemos ter sempre uma grande criação e tirar nosso sustento sem depender da maré que está cada dia pior. Então, Maria, eu não estava louco, nem possuído por má sorte do demônio nem muito menos sustentando outra família como vocês pensaram. Eu estava apenas acreditando nos meus sonhos. Mas em nenhum momento você parou para perceber isso, preferiu interpretar as coisas do seu jeito, somar com as interpretações maldosas dos outros e aproveitar algum momento de mágoa ou rancor pra jogar tudo isso na minha cara, mais preocupada em me agredir do que em me ajudar ou me entender. Mas não a culpo por isso Maria, infelizmente estou acostumado com essas coisas, é assim que acontece com a maioria das pessoas. Quer saber Maria, pode até ser que o cercado que eu esteja fazendo não dê certo, mas eu só lhe peco uma coisa Maria: nunca queira me tirar o direito de sonhar.

Roberto foi dizendo isso enquanto levantava seus olhos e os voltava em direção ao mar, em um misto de reverência e fascinação.

Ricardo Gurgel


Ao som de 'Amanheceu, peguei a viola' - Almir Sáter
Degustando Chá de Menta com Chocolate
Imagem: 'El Pescador' - Alfred Rogoway

sexta-feira, 2 de junho de 2006

Enquanto isso, meu primeiro amor

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Ensaio


Estou deitado de lado com a mão na cabeça contemplando teus olhos verde-azulados. Nada me parece tão singelo quanto a profundidade do teu olhar. Já faz horas e horas que estou assim a admira-la. Se Auguste Rodin me visse desta forma, talvez pintasse um novo quadro. Quem sabe intitulado de "O Admirador". Se da Vinci visse tua silhueta e teu sorriso, talvez ousaria pintar o irretratável. Pode ser que nomeasse a tela de "A Nona brisa".

De fato pareces uma brisa do mar. Não necessariamente vista, mas sempre sentida. Consegues envolver as figuras na praia sem mesmo que estas, muitas vezes, notem. O fato é que consegues emoldurar o cenário. As ondas seguem o teu ritmo, os cabelos se esvoaçam, a areia fica na iminência de levantar e partir. É incrível como és capaz de esculpir o teu entorno. Onde tocas, modificas. E uma vez modificado, nunca mais torna a sê-lo como era antes.

Quando me tocaste a primeira vez, lembro bem, fora-me algo bastante peculiar. Algo parecido como o primeiro amor: idealizado e cantado por muitos, mas que poucos conseguem tocá-lo, senti-lo, vivê-lo. Naquela posição que eu estava, estático, pensativo, reflexivo, admirado, nada mais era do que um ser enternecido diante do seu amor, do primeiro amor.

Ah se eu fosse um poeta! Certamente, fazer-te-ia a mais bela poesia. Como não sou, faço-te o meu próprio poema. Admiro a beleza estética, a métrica e a rima, mas toco a alma extraindo dela a essência. Quem dera, eu fosse um romancista! Transcreveria nossos passos nas páginas de um livro tão bem como Shakespeare escrevera Romeu e Julieta. Mas, isso também não é especialidade. Então faço da nossa vida um best-seller recheado de capítulos de amor tão bonitos e singulares que nem o melhor dentre os escritores conseguiria descrevê-los. Se eu fosse um cantor, talvez eu comporia uma música especial. Como não nasci com este dom, faço-te a minha letra principal. Tocando seu corpo que mais parece um refinado violão, componho a mais bela melodia já vista. Canto-te como minha mais bela canção. Se eu fosse um maestro, sem dúvidas regeria sua vida. Contudo, prefiro reger os teus passos em minha direção. Sempre. E quando chegas até mim, peço que o faça repetidas vezes -- uma partitura recheadas de ritornelos. Se fosse um ator, meu maior desejo seria contracenar contigo. Como também não o sou, opto por fazer contigo o meu par romântico no palco da vida.

Nasci assim...à primeira vista, meio que sem dons especiais. Simples como o amor. Contudo, ao teu lado, nunca deixarei de procurar o tom. Mas farei deste tom algo incomparável, almejado, único, singular, intangível, sus generis. Regra de fé e prática. Amar-te-ei com a singeleza e a devoção de primeiro amor que és e que para toda vida há de sê-lo. A tua felicidade será o meu objetivo. A minha vida será o veículo. A nossa vida será o caminho. E que este possa sê-lo sempre completo, porém simples, assim como o amor. Pois ao teu lado, sentindo o teu amor, consigo ter a certeza que é na simplicidade que a vida floresce.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Contra o tempo' -Vander Lee
Degustando Chocolate Quente com Granulados Coloridos
Imagem: 'Woman Reading' - Pablo Picasso

terça-feira, 30 de maio de 2006

O Jardim dO Poeta

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Poesia


Já te disse "O Poeta" que, se não fosse
A tua condição de anjo, ele se anularia como tal.
Refleti por muito tempo acerca desta condicional
Da qual dou fé e hoje posso compreender muito bem.
Inequivocamente, tu és o anjo do anjo do bem
Mesmo que tentem descrever-te, adjetivos não conseguirão.

De certo, te encontras na linguagem transcendental:
Envelo poético nos últimos versos dos versos de Salomão.

A imagem que me passas vai muito além de uma flor.
Lânguido, teu cálice feminino parece mui frágil;
Formoso e protegido és de fato, mas incapaz de espinhar alguém.
Acomoda em tua corola uma verdadeira coroa majestosa,
Zona apical em que reside, sem dúvida, seu brilho, seu maior encanto.
Encanta-se quem tem o privilégio de conviver em tua presença!
Mas, sinceramente, questiono se és simplesmente uma flor.
A não ser que eu esteja enganado, em ti reside todo um jardim:
Símbolo de beleza, fortaleza em harmonia, candura, felicidade, amizade e amor.

Ismael Alexandrino

Ao som de 'Song for Elizabeth' - Jonathan Butler
Degustando Café Expresso com Raspas de Chocolate
Imagem: 'Lavandas a Buis' - Daniel Girault

quarta-feira, 24 de maio de 2006

Fui buscar o kit do amor

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Poesia


Princesa, passei na morada dos sentimentos;
Por alguns momentos, contemplei a sua beleza.
Lá conversei com meu coração
E ouvi uma canção que me emocionei.

Nela você cantava o amor que tem por mim;
Aquilo tocou muito profundo, minha princesa.
Quanto amor, quanto carinho, quanta delicadeza!
Confesso que fico bobo sendo amado assim.

Mas não há o que se importar com tal bobeira
Pois nosso amor não deve satisfações,
Não arde em ciúmes, não esbarra em contradições
Não é nada da boca para fora, não é brincadeira.

Um dia, meu amor lindo, vou te levar nesse lugar
Onde não existirá o tempo, mas apenas o momento.
Lá não existe ganância, angústia, inveja, desalento,
Lá reina a paz e é onde escolheremos para amar.

Nunca mais passearei por aquela morada sozinho
Levarei você, minha namorada, e lá faremos nosso ninho.
Amaremos noite e dia, amaremos segundo e hora
Amaremos sem porfia, amaremos de dentro para fora.

Mas minha passada por lá não foi em vão!
Trouxe muita coisa que está dentro do coração...
Trouxe para você um kit de ternura.
Nele só há contentamento, não há amargura.

Vem acompanhado com um beijo carinhoso
Bem delicado, molhado e gostoso,
Vem aquecido na temperatura ideal
Para não causar resfriado, nem queimadura de 3° grau.

Vem com uma mordidinha para ser dada na nuca
Vem com um sussurro para te deixar maluca,
Um sussurro eloqüente no silêncio mordaz,
Que te traz contagiantes arrepios e te satisfaz

Vem com um afago doce e um abraço justo...
Tão justo que pode fazer o coração levar um susto
Com medo de ser atropelado...
Mas que logo passa por se sentir amado.

Vem um carinho que te faz perder o juízo
Vem alguns gestos lindos, todos eles de bom siso
Vem com um afeto muito hábil
Que transforma qualquer erro em algo passageiro, lábil.

Vem um baú de respeito mútuo muito bom,
Vem palavras de afago ditas em alto e bom som,
Vem uma bolsa de respeito pelo próximo como abono,
Vem, inclusive, uma plaquinha escrita que você tem dono!

Vem tudo isso, minha princesa, e algo mais.
Mas quero te levar lá quando passar a dor
Pois quero que sinta todo o meu amor.
Far-lhe-ei tudo e, mesmo assim, nunca será demais.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Amar é' - Roupa Nova
Degustando Leite Gelado com Chocolate
Imagem: 'Sonhos de uma Viagem' - Lúcia Hinz

segunda-feira, 1 de maio de 2006

Inversão apocalíptica de valores

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Crônica

Cada tempo tem o seu império; cada império tem suas loucuras; cada loucura, seus defensores! Foi assim no império grego; depois no império romano; hoje, no império capitalista (melhor chamá-lo assim)!

As sociedades se sucedem; novas formas de governo são experimentadas; novas teorias administrativas tentam balizar a ordem mundial, mas coxeamos em princípios básicos e fundamentais da ética e da moral, o que compromete nossa existência, enquanto ser humano, político por natureza.

Parece viver-se, nos dias hodiernos, inversão de alguns valores que nos remetem a questionar nossa própria condição intelectual! Tem-se a impressão de que estamos formando novos manuais de conduta, centrados na violência, desenhando-se uma escada sem corrimão, com declive de destino ignorado! -- Tudo em nome da ganância e do prazer momentâneo, em relacionamentos notadamente egoístas.

As civilizações criaram deuses que ocupam o lugar de Deus, como o poder, o sexo e o dinheiro.

Os padrões morais se confundem, em nome da liberdade de expressão do pós-modernismo (se é que há este momento na história!) com conseqüências preocupantes, do ponto de vista ético-conceitual!

Neste contexto, os pais, de tão ausentes e distantes dos filhos, perderam a autoridade dos lares; os filhos, por sua vez, jogados na selvageria das grandes cidades, perderam a noção de família! -- Contempla-se uma verdadeira multidão de filhos pródigos! Estes não vêem que os sonhos estão na poesia, e não nas drogas; não enxergam que fazer amor é diferente de fazer sexo; não percebem que liberdade é diferente de libertinagem! Assim, a célula-mãe da sociedade está doente, adoecendo -- conseqüentemente -- todo o organismo social!

O homossexualismo avança em escala geométrica, mundo afora, num viés que insiste em ser absorvido pelas constituições, de tanto respaldado pelas consciências ditas evoluídas!

O capital especulativo mundial, globalizado, eletrônico e volátil, dita as regras da economia sem fronteiras, patrocinando o ócio dos países ricos e prejudicando as nações em desenvolvimento, que são mantidas como verdadeiras colônias econômicas, pela prática abusiva de juros escandalosos, numa autêntica agiotagem internacional legalizada!

Fica o alento de que todos os impérios terrenos têm início, meio e fim! -- Restando-nos, portanto, lutar e torcer para que este atual, que mostra, já, alguns sinais de tombo, não vá muito além, o que poderá nos custar um apocalipse antecipado!

Avaniel Marinho

Ao som de 'Miss Sarajevo' - U2
Degustando Café Preto
Imagem: 'Cavaleiros do Apocalípse' - Bassan Medonça (Homenagem ao massacre da fome em Ruanda, África)


sexta-feira, 14 de abril de 2006

Compreensão

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Monólogo



Eu sei das tuas tensões,
dos teus vazios e da tua inquietude.
Eu sei da luta que tens travado à procura de Paz.
Sei também das tuas dificuldades para alcançá-la.
Sei das tuas quedas, dos teus propósitos não cumpridos,
das tuas vacilações e dos teus desânimos.

Eu te compreendo...

Imagino o quanto tens tentado para resolver as tuas preocupações
profissionais, familiares,
afetivas, financeiras e sociais.
Imagino que o mundo, de vez em quando,
parece-te um grande peso que
te sentes obrigado a carregar.
E tantas vezes, sem medir esforços.
Eu conheço as tuas dúvidas,
as dúvidas da natureza humana.
Percebo como te sentes pequeno
quando teus sonho acalentados vão por terra,

quando tuas expectativas não são correspondidas.
E essas inseguranças com o amanhã?
E aquela inquietação atroz em não saberes
se amanhã as pessoas que hoje te rodeiam ainda estarão contigo?

De não saberes se reconhecerão o teu trabalho,
se reconhecerão o teu esforço.
E, por tudo isto, sofres, e te sentes como um barco sozinho num mar imenso e agitado.
E não ignoro que, muitas vezes,
sentes uma profunda carência de amor.
Quantas vezes pensaste em resolver definitivamente
os teus conflitos no trabalho ou em casa.

E nem sempre encontraste a receptividade esperada
ou não tiveste força para encaminhar a tua proposta.

Eu sei o quanto te dói os teus limites humanos e
o quanto às vezes te parece difícil
uma harmonia íntima.
E não poucas vezes,
a descrença toma conta do teu coração.
Eu te compreendo...

Compreendo até tuas mágoas,
a tristeza pelo que te fizeram, a tristeza pela incompreensão que te dispensaram,
pelas ingratidões, pelas ofensas,
pela palavras rudes que recebeste.
Compreendo até as tuas saudades e lembranças.
Saudade daqueles que se afastaram de ti,
saudade dos teus tempos felizes,
saudade daquilo que não volta nunca mais...

E os teus medos?
Medo de perderes o que possuis,
medo de não seres bom para aqueles que te cercam,
medo de não agradares devidamente às pessoas,

medo de não dares conta,
medo de que descubram o teu íntimo,
medo de que alguém descubra as tuas verdades e as tuas mentiras,
medo de não conseguires realizar o que planejaste,
medo de expressares os teus sentimentos,

medo de que te interpretem mal.
Eu compreendo esses e todos os outros medos que tens dentro de ti.

Sou capaz de entender também os teus remorsos,
as faltas que cometeste,

o sentimento de culpa pelos pequenos ou

grandes erros que praticaste na tua vida.
E sei que, por causa de tudo isso,
às vezes te encontras num
profundo sentimento de solidão.
É quando as coisas perdem a cor,
perdem o gosto e te vês envolto
numa fina camada de indiferença pela vida.
Refiro-me àquela tua sensação de isolamento,
como se o mundo inteiro fosse indiferente às
tuas necessidades e ao teu cansaço.
E nesse estado, és envolvido pelo tédio e cada ação ou obrigação
exige de ti um grande esforço.

Sei até das tuas sensações de estares acorrentado, preso;
preso às normas, aos padrões estabelecidos,

às rotineiras obrigações:
"Eu gostaria de...
mas eu tenho que trabalhar,
tenho que ajudar,
tenho que cuidar de,
tenho que resolver,
tenho que esperar,
tenho que!...".
Eu te compreendendo...

Compreendo os teus sacrifícios.
E a quantas coisas tens renunciado,
de quantos anseios tens aberto mão!...
E sempre acham que é pouco...
Pouca coisa tens feito por ti e tua vida,
quase toda ela, tem sido afinal dedicada a satisfazer outras pessoas.
Sei que, nas tuas horas mais amargas, a não conformidade e
a revolta afloram em teu coração.
Revolta com a injustiça do mundo, revolta com a fome,
as guerras, a competição entre os homens,
com a loucura dos que detêm o poder, com a falsidade de muitos,
com a saúde da família, com a repressão social e com a desonestidade.

Por tudo isso, carregas um grau excessivo de tensões,
de angústia e de ansiedade.

Sonhas com uma vida melhor,
mais calma, mais significativa.
Sei também que tens belos planos para o amanhã.
Sei que queres apenas um pouco de segurança,
seja financeira ou emocional, e sei que lutas por ela.

Mas, mesmo assim, tuas tensões continuam presentes.
E tu percebes estas tensões nas tuas insônias ou no sono excessivo,
na ausência de fome ou na fome excessiva,
na ausência de desejo ou
no desejo excessivo,
na vontade de sair de casa cedo e não querer marcar hora pra voltar.

O fato é que carregas e acumulas tensões sobre tensões:
tensões no trabalho, tensões na família,
nas exigências e autoritarismos de alguns,
nas condições inadequadas de salário e na inexistência de motivação,
nos ambientes tóxicos dos hospitais,
na inveja dos colegas, no que dizem por trás.
Tensões na família, nas dependências devoradoras dos que habitam a mesma casa;
nos conflitos e brigas constantes, onde todos querem ter razão;
no desrespeito à tua individualidade,
no desrespeito à tua autonomia,
no controle e cobrança das tuas ações.

Eu te compreendo, e te compreendo mesmo.

Eu te Compreendo, mas discordo.

Tu és o único responsável por todos
estes sentimentos.
A vida te foi dada de graça e existem, em ti,
remédios para todos os teus males.
Se, no entanto, preferes a autocomiseração
ao invés de mobilizares as tuas energias interiores,
então nada posso te oferecer.

Se preferes sonhar com um mundo perfeito, sem máculas,
ao invés de te defrontares com os limites de um mundo falho e humano,
não posso dividir sua carga.

Se és demasiadamente cartesiano, imaleável,
não posso demovê-lo e ajudá-lo.

Se preferes lamentar o teu passado e encontrar nele desculpas;
se optastes por tentar controlar o futuro,
-- o que jamais controlarás com todas as suas incertezas --;

se resolveste responsabilizar as pessoas que te rodeiam
pela tua incompetência em tratar com os aspectos negativos delas,
em nada posso te ajudar.

Se trocaste o auto apoio e o apoio mútuo
pelo apoio e reconhecimento do teu ambiente apenas,
então em nada posso ampará-lo.

Se queres ter razão em tudo que pensas;
se queres obter piedade pelo que sentes;
se queres a aprovação integral em tudo que fazes;
se escolhestes abrir mão de tua própria vida,
para comprares o reconhecimento dos outros,

-- através de renúncias e sacrifícios --
em nada posso te auxiliar.
Se entendeste mal o silogismo:
"Amar ao próximo como a si mesmo",
esquecendo-te da premissa maior de AMAR A SI MESMO,
não posso de ajudar.

Se não tens um mínimo de coragem para
estar com teus próprios sentimentos,
sejam agradáveis ou dolorosos;
se não tens um mínimo de humildade para te perdoares pelas tuas imperfeições
e reconhecer-te como humano;

se desejas impressionar os outros e
angariar a simpatia para teus sofrimentos;
se não sabes pedir ajuda e aprender
com os que sabem mais do que tu;
se preferes sonhar, ao invés de sonhar e viver o hoje,
ignorando que a vida é feita de altos e baixos,
nada posso te oferecer.

Se achas que pelo teu desespero as coisas acontecerão magicamente;
se usas a imperfeição do mundo para justificar
as tuas próprias imperfeições;
se queres ser onipotente,
quando de fato és simplesmente humano;
se preferes proteção à tua própria liberdade;
se interiorizaste em ti desejos torturadores;
se deixaste imprimirem-se em tua mente
venenosas ordens de:
"Apressa-te!",
"Não erres nunca!",
"Agrade sempre!";
se escolheste atender às expectativas de todas as pessoas;
se és incapaz de dar um Não quando necessário,
se és incapaz de aceitar um Sim quando carece,
em nada posso te ajudar.

Se pensas ser possível controlar o que os outros pensam de ti;
se pensas ser possível controlar o que
os outros sentem a teu respeito;
se pensas ser possível controlar o que os outros fazem;
se queres acreditar que gera segurança fora de ti,
que podes seguir o caminho sozinho...

Eu te Compreendo mas,
em nome do verdadeiro Amor,
jamais poderia apoiar-te!

Se recusas buscar no âmago do teu ser
respostas para os teus descaminhos,

se dás pouca importância a teus sussurros interiores
e dos que estão intimamente ligados;
se esqueceste a unidade intrínseca dos opostos em nossa vida terrena;

se preferes o que parece mais fácil e abandonaste a paciência para o caminho;
se fechaste teus ouvidos ao chamado de retorno ou ao clamor de um querido;
se perdeste a confiança a ponto de não poderes entregar tua vida
à vontade onipotente de Deus;

se não quiseste ver a Luz que vem do Leste;
se não consegues encontrar no íntimo das coisas
aquele ponto seguro de equilíbrio
no meio de todas as tormentas e vicissitudes;

se não aceitas a tua vocação de viajante
com todos os imprevistos e acidentes da jornada;

se não queres usar o tempo, o erro, a queda, os obstáculos
como teus aliados de crescimento,
realmente nada posso fazer por ti.

Se aspiras obter proteção quando o que precisas é Liberdade;
se não descobriste que a verdadeira Liberdade
e a autêntica segurança são interiores,
interiores seus e dos que te querem bem;

se não sabes transformar a frase
"Eu tenho que..."
na frase
"Eu quero!" ou ?Permito!?;
se queres que o fantasma do passado
continue a fechar teus olhos para a infinidade do teu aqui e agora;

se queres deixar que o fantasma do futuro
te coloque em posição de luta com o que ainda não aconteceu
e, provavelmente, não chegará a acontecer;

se optaste por tratar o âmago e a ti mesmo como a um inimigo;
se te falta capacidade para ver a ti mesmo
como alguém que merece da tua própria parte e dos que te querem bem

os maiores cuidados e a maior ternura;
se não te tratas como sendo a
semente germinada por Deus;
se desejas usar teus belos planos de mudar,
de crescer, de realizar,
como instrumentos de auto-tortura;
se achas que é amor o apego que
cultivas pelos teus parentes e amigos;
se queres ignorar, em nome da seriedade e da responsabilidade,
a criança brincalhona que
habita em ti;
se alimentas a vergonha de te enternecer diante de uma flor
ou de um por de sol,
ou aceitar auxílio de um ser mais jovem;

se através da lamentação recusas a vida como dádiva e como graça divina,
nada posso fazer.

Mas, se apesar de todo o sono, queres despertar;
se apesar de todo o cansaço, queres caminhar;
se apesar de todo o medo, queres tentar;
se apesar de toda angústia, queres ter paz;
se apesar de toda acomodação e descrença,
queres mudar,
reflita e deleite no analisar.

Aparta do caminho das tuas dificuldades a negatividade
e óptica pessimista dos pensamentos.

São eles que te levam para as dores das lembranças do passado
e para a inquietação do futuro.

São esses pensamentos que te afastam da experiência de contato com teu próprio corpo,
com o do próximo,
com o teu presente, com o teu aqui e agora
e, portanto, distanciando-te de teu próprio coração.

Tens presentes agora as tuas emoções?
Tens presente agora o fluxo da tua respiração?
Tens presente agora o pulso e a batida de um bom entendedor do coração?
Tens agora a consciência do teu próprio corpo?
Este é o passo primordial.
Teu corpo é concreto, real, presente,
e é nele que o sofrimento deságua,
é nele que cada célula, racionalmente, faz sofrer a emoção
e é
a partir dele que se inicia a caminhada para a alegria,
é partir dele que se extingue o tormento, acaba o desalento, cura-se a dor.

Somente através dele desfaz-se a angústia e caminha-se ao retorno da paz.
Jamais resolverás os teus problemas
somente pensando neles.

Começa do mais próximo! Começa pelo corpo!
Através dele chegarás ao teu centro, ao teu vazio,
àquele lugar onde a semente germina.

Através da sua consciência
galgarás caminhos jamais vistos,
entrarás em contato com os teus sentimentos e o de outrem,
perceberás o mundo tal como é e agirás de acordo com a naturalidade da vida.

Assume o teu corpo e os teus sentimentos!
-- por mais dolorosos que sejam -- ;
assume e observa-os...observa-os e deixe-se ajudar.
Não tentes mudar nada, sê apenas a tua dor.
Presta atenção, não negues a tua dor.
Não precisa fingir estar alegre se estás triste,
Não precisa fingir coragem se estás com medo,
Não precisa fingir amor se estás com ódio,
Não precisa fingir paz se estás angustiado,
Nada disso não.
Permita-me, pegue na minha mão.

Não lutes contra teus sentimentos,
fica do teu próprio lado, deixa a dor acontecer,
como deixas acontecer os bons momentos.

Pára, para que as coisas sejam como são.
Entra nos teus sentimentos sem os julgar,
não fujas deles, não os evites,
não queira resolvê-los escapando deles - depois terás de te encontrar com eles novamente,

é apenas um adiamento, uma postergação sem fundamento, uma prorrogação.

Torna-te presente, por mais que te doa.
Tenhas certeza que algo de mui belo acontecerá.
Assim como a noite veio, ela também se irá
e então testemunharás o nascer do dia,
pois à noite o sol escurece até a meia-noite e,
a partir daí, começa um novo dia.
Sentirás brotar, de dentro de ti,
uma força que desconhecias e
te sentirás renovado na esperança e
a vida entrando em ti.
Entenderás, como perito do coração,
que a célula -- a semente -- morre mesmo, totalmente,

antes de novamente germinar e que aí floresce a vida.
Então, poderei dizer-te que
Eu te Compreendo e que, assim,
Poderei te ajudar.

E verás com muita alegria que, justamente agora,
já não precisas tanto do meu apoio, ou de separar o trigo do joio,
pois o foste buscar dentro de ti e o
encontraste dentro da tua própria dor!
Agora percebes a causa interior...
Trazes a semente da vida dentro de si.

Causas internas são primárias,
As externas reflexos de um conjunto secundário.
Bem percebes que existe a possibilidade de uma transformação...
Você consegue!
Basta querer, deixar o amor contagiar

e abrir seu coração.


Ismael Alexandrino. Petrópolis, julho de 2004.


Ao som do Silêncio
Degustando Ar
Imagem: Construídas no meu pensamento