Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Carta de Reconciliação

Carta
“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontros pela vida.” Encontrei-te, Gérbera, – tímida, porém cantante – no meio de tantas outras há aproximadamente cinco anos. Havia um tom bonito em suas pétalas, um discreto sorriso em nossos rostos, havia muito brilho no olhar. Encantei-me, quis te conhecer, apaixonei-me e te amei. A vida – uma aventura singular – com suas facetas debaixo de propósitos divinos (todos!)aprontou-nos. E nos desencontramos.

Tímida, ensinou-me a amar-te com delicadeza. Sutil e doce, fez-me sonhar, imaginar-nos a dois um “pra sempre” que nunca acaba. Vivemos neste tempo todo momentos agradabilíssimos, ricos, prazerosos, de euforia, cheios de histórias interessantes para contar para os filhos – tão sonhados! Inegável. Vivemos percaussos também, é fato, principalmente nos últimos meses, culminando com nossa dolorosa separação. Vivemos, no entanto.

Há tempos eu não te fazia surpresas, há algum tempo deixei de te encantar. Desacelerei o coração, estacionei o amor. Mas encantamento, hoje, é o que mais tenho. Empolgação, ânimo, paixão dilacerante e amor pacificador, zeloso é o que habita em mim. E não há ninguém, pessoa alguma, sobre a qual eu possa depositá-lo a não ser em ti. Não tem porque não há quem me mereça como tu, não tem porque não conheço pessoa tão valoroza. Distinta. És distinta. Provaste-me isso nos últimos dias, lição após lição, conversa após conversa, atitude após atitude. E o amor que habita em mim, novamente entrou em erupção. Sou um Etna em plena atividade jorrando lavas de amor, carinho, paixão, cuidado, bem-querer. Bem-te-querer.

Sei plenamente, Gérbera, que te feri, machuquei-a, traí seus sentimentos, arranhei sua confiança. Sei de tudo isso. O fiz, não sem dor, acredite. Dói-me mais ainda saber que o fiz. Mas não sei porquê. Insanidade, talvez. Espírito por demais aventureiro. Espírito humano, demasiadamente humano. Espírito errante, errei.

Perdoe-me. Nunca foste merecedora disso. Merecias plumas e algodões. Dei-te, muitas vezes, alfinetes que traspassaram seu corpo e hoje dão pontadas agudas em meu peito. Angustio-me. Rasgo-me por inteiro.

Imagino que ainda me amas; imagino que ainda sonhas comigo, imagino que tu sentes algo – ainda que adormecido, pequeno (ou grande até!) – de bom e gostoso por mim. Ressentida, fechas o semblante, tentas descontar algo, sarar sua dor. Compreendo-te.

Ah!, Gérbera,...quaisquer palavras minhas seriam parcas diante do que gostaria de te expressar. Não consigo transcender a tal ponto. “Amo-te tanto, meu amor, o humano coração com mais verdade. Amo-te como amigo e como amante...” e estou certo que “De tudo, ao meu amor, serei atento antes, e com tal zelo”.

Há muito amor aqui dentro, há muito amor por ti, há muito amor que quero te dar. Sem reservas. Só preciso que reconcilies comigo e esqueças o passado recente sem ressentimentos.

As flores (gérberas) que acompanham esta carta vão plantadas, não tolhidas em um buquê. Não quero que elas murchem; ambas formam um casal belo. Esse par de gérberas que te envio, Gérbera minha, são a poesia de nós dois.

Te amo muito.

Ismael Alexandrino


Ao som da frase "A gente estava tão feliz nesse dia!"
Degustando Algodão Doce
Imagem: 'Chocolate heart on a pink gerbera daisy flower for you' - Vanessa Pike-Russell

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Na esquina

Poesia
Ignoras-me
Desde aquele minuto
Depois do lapso
Daquele café
Às dezesseis.

Sabia que existia
Uma ironia por entre
Seus dentes brancos
Uma malícia repousando
Nessa sua pintinha na face.

Mas tu tens a perder
Sem muito sabor, é verdade,
Mas tem.
Eu, não.
Já perdi antes do café.
E não estou certo
Se desgostei da perda.
Não sinto remorso,
Mas dói-me não sei bem porquê.

"Porquês" me afligem
Sabias?
Sempre os chamo,
Mas não tenho tamanha destreza
Em respondê-los.
Porque tem "porquês" que são porque são.

Talvez saiba o porquê:
Perder dói. E ponto.
Interrogação
Exclamação
Final
Reticências...
Ponto-de-vista à parte, pode ser.

Incongruências de um devaneio, certamente.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Devolva-me' - Adriana Calcanhoto
Degustando Halls de Melancia
Imagem: 'Mi esquina favorita' - Silvia Maria Salto


segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Sobre coisas importantes da vida

Curtas

Na vida, amo e dou muita importância às coisas simples; não às pequenas.

Ismael Alexandrino

Ao som de Canto de Pássaros
Degustando Café Preto

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Poeminha proibido

Poesia

Falas-me de um proximidade subjetiva
Te sentes abrigada, acolhida;
Entendo-te.
Anseio, no entanto, pela objetividade
Do seu toque em minha pele ansiosa.
Às vezes, temo que me percebas
Percebas-me por demais ansioso
Receio que vejas o nudismo de minha'lma
E se afaste, vire as costas.
Então policio-me, disfarço.
Mas percebes, sei que percebes
Percebes a ligeireza do meu sorriso
Quando te vê a poucos metros
Mesmo que estática e n'outro mundo.
Contemplo-te absorto em pensamentos
Puros e serenos
Lascívos e efusivos
Desejo-te sem muitas explicações
Amo-te no meu silêncio tímido
Sem balbuciar cientificismos
Quero-te por te quero.
Tão somente!
Mas piso pé por pé
Para que não te assustes(tanto!)
Para que não sofras(mais!)
Não mais do que a vida
Já te reservou sem avisos prévios
E hoje te achas com feridas abertas
Clamando por um cuidado único
Impossível às mãos de um cirurgião qualquer.
Posso me sentir feliz
Por te sentires próxima?
Posso abrigá-la?
Posso aconchegá-la?
Posso abrigar cada um de seus sonhos adormecidos?
Posso aconchegar cada gota de sentimento pingado?
Posso ter-te infinitamente enquanto durarmos?
Calo-me.
Observo-te esperançoso, feliz
Não pela certeza da posse
Mas pela certeza do sorriso no olhar
E, para mim que o amo,
Suficiente para seguir sonhando
Com uma desventura alheia
E uma aventura eterna de nós dois.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'From this moment' - Shania Twain
Degustando Cioccolato Caldo by Fran's Café
Imagem: 'Para uma moça, com uma flor' - Ismael Alexandrino

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Um minuto

Miniconto

Ouço risos. Irreais. Há descontração; inexiste alegria. Sua alma sofre. E eu me calo. Sinto sua dor. Sofrido, contorço-me, agonizo-me. Minhas mãos estão atadas, meus pés estão atados, meu coração está se desatando. Aos poucos, é fato. Mas perceptível.

Ouço choro. Reais. Seu coração chora. E eu engulo mais saliva que de costume, uma saliva salgada. Também choro. Mas não escutas, não quero que saibas o que passa na intimidade do meu âmago. Para ser realmente sincero, eu quero. Mas, ao saber, temo que se apaixones mais, e sofra.

Não ouço nada. O silêncio do meu coração covarde, agonizante, grita. Suspiro. Já posso sentir a boca ressequida. Esgotaram-se as lágrimas. Turva-me a visão. Minha cabeça pulsa, meus braços pulsam, minhas pernas pulsam. Sinto que minha pele é pequena, quase não contém meu corpo. Vejo estrelas rodando. São estrelas? Vejo escuridão também. Já é noite? Pessoas caminham agitadas. Ululante, tento gritar, pedir socorro. Sem êxito.

Entra na sala uma moça de cabelos longos, pretos, bastante liso. Parece-me familiar. Meus olhos se acalmam. Ela sorri, aperta minha mão. Tento abraçá-la sem saber nem o porquê, mas percebo que há uma mangueira transparente conectada em meu braço. "Deve ser soro", penso. Onde estou, meu Deus?

As outras pessoas saem da sala. Ela senta ao meu lado, cochicha-me algo. Sorrio. Tento abraçá-la novamente. Acordo no vazio do meu quarto solitário.

Ismael Alexandrino


Ao som de "Wonderful tonight" - Michael Bublè e Ivan Lins
Degustando Sanduíche Subway
Imagem: Escótomas

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Dia de chuva

Poesia



Bela.
És bela.
Convenci-me
Há poucos minutos.

Gostei, sobretudo, dessa
Epifania que teu sorriso
(Onipresente!) me provoca.
Viés. Há um viés em tudo isso.
Alísios inesperados me confidenciam;
Não sei explicar a fisiologia(nem quero!), mas
Acho-me taquicárdico, e feliz.

Ismael Alexandrino

Ao som de "Wonderful tonight" - Michael Bublé
Degustando Laranja
Imagem: 'Dia de chuva' - Tuvy

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Sobre idéias

Curtas

"Idéias são como furúnculos: aparecem nas horas e lugares mais errados."

Sílvio Sebastião¹


Ao som de 'Bienal' - Zeca Baleiro
Degustando Fio Dental de Menta


¹Sílvio Sebastião é meu irmão mais velho, analista de sistemas, publicitário e consultor de marketing.

Sobre trabalhar de graça

Curtas

Quem dá água de graça é coco.

Cirilo Veloso Moraes¹

Ao som de 'Me and Mrs. Jones' - Michael Bublé
Degustando Pavê de Morango


¹Cirilo Veloso Moraes é advogado, consultor jurídico e dono do blog Simples Coisas da Vida.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Abraçar faz bem à saúde

Crônica

Morei alguns anos longe da minha família. Maior parte deste tempo morei a dois mil e quinhentos quilômetros longe de todo mundo que amo. E, em certa época, cheguei a morar quase dez mil quilômetros. Como me doía o fato de querer um abraço sem ter que pedir e, simplesmente, não tê-lo.


Ultimamente tenho pensado no significado do abraço. Quando nascemos, tão logo nosso cordão umbilical é cortado, umas das primeiras coisas que nos acontece é sermos abraçados pelas nossas mães. Estou convicto de algo: abraço de mãe no recém-nascido vicia. É, vicia. Depois dele, passamos a vida toda querendo ser abraçado.

Fico imaginando aquelas pessoas muito carrancudas, de semblante fechado, hostil, que querem ser raivosas, se elas não se sentem bem quando são abraçadas. Principalmente aqueles homens que adoram posar de machões, que dizem que não gostam dessas coisas, que isso não é coisa de homem. Engraçado: sou homem físico e psicologicamente muito bem resolvido, e adoro um abraço. Pode ser rápido, apertado, de leve, carinhoso. De preferência aconchegante e demorado.

E, tudo isso, não precisa ser necessariamente da namorada. É claro que o abraço da amada tem um significado especial. Estranho se não fosse assim. Mas o fato é que gosto do calor humano, do contato com a pele, de sentir o outro coração. O abraço humaniza e, em mim, acalma por demais. Abraço de político e de bêbado confesso que não me agrada, mas aí já são situações específicas de desagrado.

Quem não gosta de quando está aflito, com vontade de chorar ou com medo, de um abraço aconchegante? Quem não se sente impulsionado a abraçar e pular com pessoas queridas quando recebe o resultado de uma aprovação no vestibular, num concurso, ou quando ganha algo que almejava bastante? A conquista a ser festejada é a medalha, mas o abraço é o Champagne para brindar a comemoração, o divertimento. Quando o Champagne é estourado nos pódios da vida, nada mais é que uma demonstração de alegria estourando também, e não há quem não queira ser abraçado e festejado naquele momento.

Minhas irmãs costumam dizer que eu sou “beijoqueiro”. Admito. Gosto de beijar. Gosto de ser beijado. Seja na boca, seja no rosto, seja um beijo jogado ao vento. Mas sou “abraçeiro” também. Hoje, no meu consultório, de onde escrevo esta crônica, atendi uma paciente especial. Ela tem um problema cognitivo; sempre que a vejo meu coração saltita de alegria. Amuriel adora abraçar. A mãe dela tenta contê-la, fica constrangida, mas não há uma consulta que Amuriel, na sua inocência e falta de maldade, não me dê um beijo no rosto e um abraço apertado. E o abraço dela é daqueles que pega pela cintura até o outro lado do corpo, e bem apertado.

Como foi gostoso receber aquele abraço com a sinceridade de uma criança, sem maldade, sem malícia, e cheio de amor.

Ela usa alguns remédios controlados sem os quais ela teria crises convulsivas. Então, mensalmente, ela precisa me ver para que eu possa reavaliá-la, e renovar sua receita. Mas o que ela não sabe é que a presença alegre dela no meu consultório, com seus dentes a maioria precisando de cuidados odontológicos, com seu jeito espalhafatoso, mexendo em tudo, perguntando tudo, e babando em meu rosto, é que ela com toda certeza faz muito mais bem a mim do que eu faço a ela.

Espero que você, querido leitor, não perca tempo de vida sem abraçar quem você ama, sem sorrir para quem você vê todos os dias e que, às vezes, só precisa disso: de um sorriso, e de um abraço. Posso te garantir que só te fará bem à saúde do corpo e da alma. Seu e do outro.

Torço para que nos encontremos sempre. Até lá, receba meu sincero e afetuoso abraço.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Como eu quero' - Leoni
Degustando Frapê de pêssego
Imagem: 'O abraço' - Bia Moraes

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Cinema mudo

Poesia

Fecho meus dois negros olhos,
Preparo a sala de visitas:
Bebida fria,
Pipoca morna,
Salinha quente.
Um filme em três dimensões!
Há lágrimas na tela
E elas pingam
Pinga a tristeza
Pinga o remorso
Pinga a excitação
E não deixa de pingar amor.
Amor latente, não vivido
Amor impossível, possível
E urgente.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Chega de saudade' - Vinícius de Moraes e Toquinho
Degustando Johnny Walker Black
Imagem: 'Una furtiva lágrima' - Sílvia de Luque

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Pés na areia

Poesia

Já não somos ideais.
A bem da verdade,
Desisti do ideal.
Do certinho.
Do utópico.
Utopias me afligem.

Justamente por serem utopias.

Mas somos possíveis.
Cada vez mais possíveis
Neste mundo de incertezas
Mundo de possibilidades infinitas
Infinitamente melhores que o ideal.

Justamente por serem possíveis.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Metade' - Adriana Calcanhoto
Degustando Morango com Leite Condensado
Imagem: 'Pés na areia' - Interlúdio

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Moldura

Poesia

Uma cidade fortificada
Costumes provincianos
Liberdade conquistada.
Fascinante paradoxo,
Um castelo de sonhos
Surrealidade contemporânea.

Emergiste ou deliro?
Emergiste. Estou certo.
Deliro. Estou certíssimo.
Onde está – se porventura há –
O erro desta pintura?
Não há erro algum.

Óleo sobre tela
Cores misturando as pernas
Misturando os sentidos
Moldura sob medida:
És uma cidade fortificada
E frágil;
Preso estou em teu seio
E forte.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Esquadros' - Adriana Calcanhoto
Degustando Pêssego em Calda com Creme de Leite
Imagem: 'Castelo de Santa Maria da Feira' - Luís Bravo Pereira

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Sobre o comunismo

Curtas

Karl Max foi um embusteiro intelectual que distorcia fatos. É claro que seu sistema não funcionou quando aplicado à União Soviética: estava todo embasado em falsidades. Seu único legado foi conduzir um país rico como a Rússia à pobreza. Não há qualidades redentoras, nenhuma que seja, no marxismo. Aqueles que discordarem de mim que mostrem provas. Mostrem-me um regime que tenha empregado princípios marxistas e tenha melhorado a vida de seus cidadãos. Não há. Todos os que enveredaram por esse caminho na Europa, América Latina, Ásia ou África falharam. Também não faço nenhum distinção entre nazismo, comunismo e facismo. Foram todos movimentos totalitários e radicais pertencentes à esquerda. Marx, afinal de contas, derivou todas as suas teoris de Hegel, assim como os nazistas. Todos os sistemas totalitários do século XX foram de esquerda: apenas na superfície pareceram pertencer à direita.

Paul Johnson¹


Ao som de 'Minha casa' - Zeca Baleiro
Degustando Nuggets

¹Paul Johnson é ensaísta, escritor, jornalista e historiador inglês.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Sobre a tristeza

Curtas

Às vezes a tristeza se liquefaz, salga a língua, e pinga no chão.

Ismael Alexandrino

Ao som de 'É isso aí' - Ana Carolina e Seu Jorge
Degustando Poeira

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Suspiro

Poesia
A saudade me bate
A distância me isola
O amor arde.

Preciso dizer quantas vezes
Que já não te quero mais
Longe de mim?

Ismael Alexandrino


Ao som do mar
Degustando Água com Gás
Imagem: 'Contemplando o Mar Adriático' - Diego Farias

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Madrugada

Poesia

As lembranças não são vagas.
São latentes, fortes, intensas.

Ainda sinto teu perfume
Respiro-te.
Ainda vejo teus olhos
Navego-te.
Ainda sinto gosto hemático
Degusto-te.

Meu cenho franzido
Sorri levemente
Quando te penso:
Antes de ver-te,
Já te via.
Antes de cheirar-te,
Sentia-te toda.
Engravidei meus pensamentos
Fecundados na última hora.

E o tempo – fugidio –
Sempre corre
Deixando-me à pé
E sozinho.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'The Blower's Daughter' - Damien Rice
Degustando Crepe de Morango com Chocolate
Imagem: 'Céu estrelado' - Rafa Neves

sábado, 2 de agosto de 2008

Monólogos da cachaça

Crônica

Dias desses estava de plantão num dos hospitais em que trabalho. Na sala eu escutava um homem resmungar, rir, ameaçar. Era um turbilhão de sentimentos, sensações diversas, sons bizarros, piadas. Por vezes, notava que as enfermeiras tentavam indagá-lo, ajudá-lo; ouvia-se algum diálogo. Mas na maior parte do tempo o que eu ouvia era o Seu Fulano conversando sozinho, num solilóquio concentrado, aqueles monólogos que nos faz rir.


Terminei de suturar a mão delicada de uma mocinha, lavei-me, e fui ver o que se passava na sala ao lado. "Eu não estava fazendo nada, doutor." -- apressou-se o senhor. Não queria muito saber se ele tinha feito algo ou não, estava mais interessado em ver quantos cortes aquele senhor tinha na cabeça quase raspada. Negro, de boné branco, cheio de manchas de sangue no boné. Um legítimo tricolor.

Pedi os materiais necessários, posicionei o homem, e comecei a me preparar para suturá-lo. Não tinham menos de oito cortes na sua cabeça. Segundo ele, havia sido apedrejado. Suspeitei. A mira de quem o alvejou teria de ser muito boa para acertar só na cabeça. Além do que a forma dos cortes me fazia acreditar de que se tratava de pauladas.

Comecei costurá-lo, enquanto ele não parava de fazer piadas com todas as auxiliares, e com a sua própria situação. Sempre jurando revidar. E sempre falando que não estava fazendo nada com o outro homem que o agrediu. Insistiu tanto nessa fala que não me contive: "Mas Senhor Fulano, o que o senhor estava fazendo com o homem que te agrediu?".

"Uai, doutor...não fiz nada com ele não. Eu estava lá mexendo com a muié dele, mas com ele mesmo eu não fiz nada. Aí ele não gostou e me enxeu de pedradas." A seriedade com que ele disse isso era de comover qualquer cidadão, e fazer acreditar que ele era o Santo Expedito encarnado.

Não me contive. Sem que ele percebesse, dei um discreto sorriso e continuei a completar os mais de vinte pontos na sua cabeça.

Tem coisas que precisam realmente de uma explicação clara para que entendamos e sejamos convencidos.

Agora entendi, Seu Fulano.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Beber, cair, levantar' - Aviões do forró
Degustando Suco de Caju

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Parábola do papagaio

Crônica

Não sei se é piada já em forma de piada mesmo, ou se limita à citação de uma crônica de Humberto de Campos, na minha opinião, ainda o maior cronista da literatura brasileira.

Um sujeito queria comprar um papagaio, entre outras coisas, para ensinar-lhe a dizer todos os dias: "Deus seja louvado!", frase machadiana que durante algum tempo figurava nas cédulas do dinheiro em circulação. Um vendedor de papagaios ofereceu-lhe um espécime raro, belo e brilhante em sua plumagem verde e amarela, com alguns toques de azul, uma síntese animal das cores da nossa bandeira, salve, salve.

O comprador perguntou:
- Ele fala?

O vendedor respondeu:
- Não. Mas ele pensa.

Lembro a anedota às avessas, quando vejo e ouço certos governantes e políticos, o mais notório deles sendo o próprio presidente da República, que é uma mistura de político e governante.

Ao contrário do papagaio da anedota, eles falam, falam muito, falam demais, a qualquer hora e por qualquer motivo. Bem ou mal não importa para eles. O que importa é falar.

E ainda ao contrário do papagaio citado aí em cima, não pensam. Ou pior, só pensam naquilo. Como o Juquinha de outra anedota, que só pensava em sacanagem e coisas afins.

A nossa classe política, com as exceções de praxe e circunstância, que felizmente são muitas, está repleta de papagaios emplumados, patrióticos, alguns deles chegam a estar a venda. Falam, falam, mas não pensam no compromisso que assumiram nas campanhas eleitorais, quando juraram trabalho, honestidade e dedicação à causa do povo que os elegeu.

Carlos Heitor Cony¹


Ao som de 'Telegrama' - Zeca Balero
Degustando Leite Gelado com Chocolate
Imagem: 'Come capim porque gosta' - Luiz Lage


¹Carlos Heitor Cony, romancista e cronista, é imortal da Academia Brasileira de Letras e membro do Conselho Editorial da Folha.

sábado, 28 de junho de 2008

Meu último poema

Poesia
Onde está a paz?
Onde está o perdão?
Será que estão concentrados
Rezando
Num campo de concentração?

Onde está o amor?
Onde está o valor?
Será que estão delicados
Repousando
Numa lixeira da maternidade?

Onde está a comida?
Onde está a esperança?
Será que estão alados
Voando
Nos bolsos engravatados da ganância?

Onde estão os religiosos?
Onde estão os humanistas?
Onde estão os políticos?
Morreram todos na última guerra?
Já não são mais?

Onde estão todos, por favor?
Terminarei o meu último poema sozinho?

Eu grito; não ouvem.
Eu aceno; não enxergam.
Vivo o caos
Vivo o mal
Vivo o fim
Não vivo mais.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'One' - U2
Degustando Hemáceas
Imagem: 'Dachau Concentration Camp' - Hugo César

domingo, 22 de junho de 2008

Na janela velha

Poesia
Sabe, Dona Branquinha,
Daquela mocinha tímida

Eu só queria

Um namorinho de portão:


Dois olhares

Dois segundos

Dois "ois"


Duas cartas
Duas mãos

Duas alianças


Um altar
Um "sim"

Um coração.


Ismael Alexandrino



Ao som de 'Morena Flor' - Vinícius de Moraes e Toquinho
Degustando Chocolates Suíços

Imagem: 'Foto da Janelinha' - Patrícia Pedrini

sábado, 21 de junho de 2008

Eu quero fazer nada - o Nadismo

Manifesto

Quero que haja tempo para não ter nada para fazer.
Quero desfrutar destes momentos tranquilamente, sem pressa.
Quero compartilhar isso com os amigos.

Eu quero acabar com a pressão sufocante de estar sempre correndo atrás de um objetivo, de ter que estar o tempo todo fazendo algo que seja produtivo, útil, eficiente, rápido, dentro do prazo.

Quero minimizar a terrível sensação de que, por mais que se corra, nunca dá tempo para fazer tudo e nunca sobra tempo que não seja seriamente planejado, pois ficar sem fazer nada dá a impressão que se está perdendo tempo e isso nos faz sentir culpados.
Quero eliminar a pressa que faz a vida passar cada vez mais rápido.

Vivemos num sistema desregulado que nos cobra um preço muito alto: tensão, ansiedade e estresse.
Sei que não sou o único que sente isso e certamente há mais gente que se deu conta que está na hora de encontrar um equilíbrio e atentar para a qualidade da nossa vida agora e não depois, quando der.
Estou certo de que podemos mudar essa situação por que somos nós que fazemos as escolhas e podemos escolher ir mais devagar, aproveitando melhor o caminho.

Por isso foi criado o Clube de Nadismo. Para proporcionar a experiência, para dar o gostinho, para criar o hábito e para que ele se estenda e repercuta na vida como um todo.
Não se trata de uma pausa para descanso para depois voltar com todo gás.

É fazer nada sem objetivo nenhum, como um fim em si mesmo.
É algo para ser absolutamente sem utilidade, não produtivo, sem expectativas, sem controle. Simplesmente relaxar e deixar acontecer.
Deixar fluir.

Espero que assim chegue o dia que a palavra estresse seja obsoleta.

Conto com todos os que quiserem fazer parte deste tempo de serenidade, harmonia e consciência.
Vamos não fazer juntos.

Marcelo Bohrer, o Marboh¹


Ao som de 'Nada'
Degustando 'Nada'
Imagem: Mascote do Clube de Nadismo - Marboh

¹Marcelo Bohrer, o Marboh, é designer, consultor criativo e fundador do Clube de Nadismo.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Sobre a inteligência

Curta

Estou convencido de que inteligência é afrodisíaco.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Fast car' - Tracy Chapman
Degustando Suco de Limão

terça-feira, 17 de junho de 2008

Há Um Refúgio

Artigo


Quando o rosto enrubescer, e a vergonha tornar a expectativa em frustração. Há um refúgio para se refazer. Quando o olhar se perder na imensidão da noite tentando contar as estrelas faiscantes. Há um refúgio seguro como um porto para se ancorar no inverno. Quando as lágrimas se secarem nas faces tristes que abraçaram a solidão. Há um refúgio para oferecer o afago que consola. Quando todas as esperanças desvanecerem, pedindo o golpe de misericórdia que põe fim ao sofrimento. Há um refúgio que renova as forças e torna os punhos fortes para lutar.

O refúgio não é secreto e nem fica distante. Basta abrir e fechar após si uma porta. Porta que aberta chama para a luz, e que fechada abre as cortinas da paz como um sol brilhante depois de uma manhã chuvosa e fria. A paz que aquece sem queimar. Nesse lugar todos os sons se calam, pois é tempo de orar.

O segredo não está nas mãos postas ou nos joelhos dobrados. Está no coração quebrantado que se deixa derramar diante do Pai que vê no secreto e enxerga no meio da escuridão. Diante de quem nada fica de pé. Diante quem tudo se encurva para adorar. Diante de quem se deve retirar as sandálias dos pés.

Ele vem com o seu olhar e seu abraço. Sua luz dissipa toda escuridão, até mesmo a escuridão do coração. Diante daquele que se ajoelhou ele exercita sua majestade diferente e aceita a dura confissão. Ah! Quem pode medir o seu amor! Quem pode descrever o seu calor! Quem ficará de pé diante do Filho do Homem!

Então a escuridão revelará o brilho oculto da sua luz que ele só revela a quem quiser revelar. Incontrolável poder que arrasa o pecado e que destrói todas as fortalezas da alma que aflita se rende. Ah! Eu vou morrer se ele não me salvar! Estou perdido! Caído diante de uma presença santa, bela, insondável e indescritível. Estou totalmente em suas mãos. Que bom que é assim, pois ele é a própria bondade, a justiça que não erra; o perdão que não acaba. O pastor que toma a ovelha perdida nos seus braços e a carrega para casa, a sua casa.

No silêncio e do silêncio ouço a sua voz. Escrita nas palavras do livro sagrado. Escrita nos meus ouvidos e na minha memória. A sua presença percorre livremente os caminhos secretos de minha alma. Ele me busca e me encontra e eu me rendo e me deixo levar. Ele me conduz ao rio e me dá de beber. Lava meus machucados e cuida de mim sem eu merecer.

Depois ele fica por ali, olhando para mim. Olhando com amor, sem parar, sem mudar a direção do olhar. Ele pára e me escuta. Nada diz, mas o seu silêncio fala tudo! Não vai embora, mas não me condena. Não me deixa, mas me liberta. Eu fico confuso e o amo. Eu não entendo, mas retribuo. Nada pergunto, mas a tudo entendo, pois ele responde e fala no meu coração. Dentro de mim. E eu me lembro das palavras escritas no livro que eu li e que foram guardadas na mais profunda gruta de minha memória. Elas ressoam com o vento. Elas me saciam com a água do rio que corre sem parar e que vai para um imenso mar azul que se abre numa enseada cercada de montanhas e árvores coloridas de um outono calmo, sereno e tranqüilo no entardecer.

Hélio de Oliveira Silva¹


Ao som de 'The mass' - Era
Degustando Suco de Laranja
Imagem:'Por onde andei' - Ismael Alexandrino


¹Hélio de Oliveira Silva é pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia-GO.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Sobre a emoção

Curtas

Quando há muita emoção, o coração se cala, e os olhos dizem o que a alma sente.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Tocando em frente' - Almir Sater
Degustando Pão de Queijo com Coca-Cola

sábado, 7 de junho de 2008

Hora herética

Poesia


Dotada de meiguice e sordidez
Fitavam-me diamantes sedutores
Da abóboda ao sótão de minh'alma
Templo gótico que me tornei.

Sacrossanto cálice rosso
De corpo sedutor, liso-aveludado
Convertia-me cada vez mais ao gótico,
Culminava erótico
Em ogivas pontiagudas.

Imoral.
Valentina era imoral.
Amoral, para falar a verdade.
Mas apaixonante!
Um animal de trejeitos sutis.

Ferormônios excêntricos,
Transpirava almíscar
Expirava almíscar
Era almíscar.

Almisracada, seduzia-me.
Mascarada, enganava-me.

Seduzido e apaixonado,
Jurei-lhe amor eterno(ou quase!).

Enganado e ressentido,
Ocultei-lhe versos ternos(ou quase!).

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Caminhos cruzados' - João Gilberto
Degustando Vino Rosso
Imagem: 'Taça de vinho' - Elisandro Dalcin

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Escolhas

Reflexão

À medida que o tempo vai passando, a idade chegando... percebemos que o tempo é aliado, deste modo não pode ser desperdiçado. A sabedoria está nas escolhas...

1. Escolhi visitar sempre meus pais, porque não neste mundo ninguém que me ame mais do que eles. Preciso aproveitar este amor e retribuir.
2. Escolhi não esperar o elevador – cara, odeio ficar olhando para o nada!
3. Escolhi não atender o telemarketing. Gasto o tempo deles e o meu!
4. Escolhi dirigir com calma, mesmo quando estiver atrasada. Pode chegar tarde, mas chegarei mais feliz...
5. Escolhi fazer o que realmente gosto, mas quando for inevitável, tentar aproveitar mesmo quando estou fazendo algo que odeio;
6. Escolhi ser “otária”, ser honesta: não vou ganhar todas, não vou conseguir tudo, mas quando conseguir, não preciso ter medo de perder, porque sei que sou capaz de fazer de novo;
7. Escolhi aceitar elogios;
8. Escolhi filtrar queixas, reclamações e críticas;
9. Escolhi, em alguns momentos ser cega, surda, muda e paralítica:

i. Tem coisas que a gente não precisa ver;
ii. Tem coisas que a gente não precisa ouvir;
iii. Coisas que a gente não deve falar;
iv. E outras, pelas quais, você não deve se mexer.

10. Escolhi o conhecimento, o aprendizado – sem pressa, sem fome, com constância!
11. Escolhi não sair do banho porque o telefone está tocando!
12. Escolhi não atender a porta de toalha;
13. Escolhi fazer da internet lazer e não vício. Se sair do ar... Não vou ter crise de abstinência!
14. Escolhi não me deixar dominar pelo bliiig do msn. Só falo no meu tempo.
15. Escolhi rir, rir muito, rir sempre – mas se não rolar, não vou ter vergonha de chorar, chorar até cansar, até sentir que meus olhos estão com jeito de personagem de desenho animado, e minha alma desidratada!
16. Escolhi ser mãe: eternizar o tempo e a falta dele. Essa é a única verdade absoluta deste texto!

E por fim, escolhi este tema, porque não houve jeito de pensar em nada melhor!!!

Gláucia Taricano


Ao som de 'Aquele abraço' - João Gilberto
Degustando Suco de Laranja
Imagem: 'Caminhos' - Rafael Pires

terça-feira, 13 de maio de 2008

Gláucia Taricano no Café Alexandrino

Apresentação
Queridos amigos e leitores,

É com muita alegria que mantenho este blog. E é com mais alegria ainda que agrego pessoas queridas, textos dos quais gosto, gente que escreve e que admiro por algum motivo especial.

Neste sentido, tenho prazer enorme em informá-los que a Gláucia Taricano escreverá neste blog toda 2ª e 4ª quintas-feiras do mês. Ou seja, na segunda e na quarta semana do mês sempre será possível lê-la por aqui. Excepcionalmente nesta semana, por motivos de desencontro maior, seu texto será publicado não na segunda e na quarta semanas, mas sim na terceira e quarta semanas. Se houver novos desencontros, peço ao estimado leitor que não fique raivoso ou triste conosco, afinal, a vida, se for rígida por demais, perde o seu lado aromático.

Gláucia e eu blogamos desde 2002/2003, quando a blogosfera ainda engatinhava no Brasil. Ela, sempre com um humor implacável, com o seu "Mãe 24h" contagiando multidões. Jornalista e mãe, amante de esportes (principalmente Tênis), é um equilibrista das cotidianeidades, uma artista do bem-viver. Falar dessa carioca de corpo e alma é muito fácil e muito difícil. Fácil porque quaisquer adjetivos positivos que se pensar ela tem. Difícil, no entanto, encontrá-los em número suficiente para fazer jus à sua pessoa.

Estou certo de que vocês, queridos leitores, assim como eu, ganharão e muito com a presença da Gláu no Café Alexandrino. Ela conhece muito bem "o lado aromático da vida"!

Glaucinha, obrigado de coração por aceitar o convite! A casa é sua, e, nela, você é livre, assim como seu espírito o é.

Queridos leitores, eis: Gláucia Taricano na sua forma mais original e inusitada de ser!

Um abração a todos!

Com alegria,
Ismael



sexta-feira, 9 de maio de 2008

Colunas

Poesia
menina-moça,
tens dons infindos
– até os anjos sabem.
mas um dos que mais gosto
é essa ligeireza que tens
em me fazer brotar, de súbito,
pingos em minha face petrificada
pela distância-tempo em que fui construído.

somos estalactites e estalagmites
nascidas em tempos remotos
e que hoje, consolidadas, tocam-se
formando esculturas irretocáveis.
habitamos cavernas de sonhos
mergulhamos em mares profundos
– quase virgens – escondidos dos olhos
das multidões atrozes por nos consumir.

és meu paraíso oculto.
não sei o que sou para ti, no entanto.
mas sei, moça-menina,
que sem mim te tornarias perdida
(desabaria!)
e sem ti dificilmente eu existiria
de pé.

Ismael Alexandrino, Bari


Ao som de 'É isso aí' - Ana Carolina & Seu Jorge
Degustando Água gasada com limão
Imagem: 'Estalactites' - Tai KS

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Os pássaros e os poetas

Crônica

É madrugada no Velho Mundo, e acabo de descobrir o que nunca passara pela minha cabeça: há pássaros que têm insônia. Nunca soubera disso. Para mim, os pássaros eram como as galinhas e patos, que buscam se acomodar para dormir, tão logo o sol dá sinais que está virando as costas. Mas não é bem assim.

Desde menino gosto de ouvir pássaros cantando. Já criei canários-belgas que cantavam quase o dia todo; meu pai até os imitava. Mas às vezes eu achava que o canto não era de alegria, mas de protesto por estarem presos. Hoje eu não criaria pássaros em gaiolas. Porque pássaros nasceram para serem livres, brincarem de voar, fazerem ninhos com restos de gravetos, dançarem para o acasalamento, fazerem bagunça nas poças de água, e cantarem quando estiverem emocionados.

Também os humanos nasceram para serem livres, andarem por onde quiserem, dançarem, namorarem, fazerem seus ninhos, e dormirem onde, como, com quem e quando quiserem. Mas há humanos que adoram prender outros humanos em gaiolas, ditar-lhes regras, cartilhas que, segundo eles, são para manter a ordem. Que ordem? Fico pensando...

Olho para os pássaros livres e só vejo alegria nos seus olhos, música nos seus bicos e paz nos seus vôos. Pássaros presos em gaiolas são silhuetas de tristeza, fragilidade, e morrem facilmente. Os humanos seriam diferentes? Quando vejo um que está somente obedecendo a regras, agindo como robôs programados, cantando apenas para ganhar mais ração, o que observo são semblantes carregados, sem humor, hostis, destemperados, frágeis nas suas emoções, sem vida. Incapazes de cantar como pássaros livres.

Por isso que nasceram os poetas. Poetas são pássaros que não agüentaram ficar presos nas gaiolas sociais e aí batem asas nos seus versos, fogem no ritmo das suas estrofes, saltitam nas suas rimas para fora das muralhas impostas, pulam de letra em letra, inventam palavras, criam outro mundo. Desde tenra idade gosto de ouvir os poetas. Ouvi tanto que, de início, mimetizei. Depois me tornei um deles. Contraventor. Pássaro livre.

Mas eu falava no início que eu acabara de descobrir que há pássaros com insônia. E como cantam bonito! A acústica do silêncio noturno é perfeita. Fiquei com imensa curiosidade de saber de que espécies são, quais são suas cores, seus instrumentos musicais. Porque também sei que existem poetas com insônia. Quando todo mundo dorme e as gaiolas são abertas pela escuridão da noite, lá vai eles escrever, inventar, criar mundos outros, exercer a liberdade que a condição humana carece.

Hoje em dia, quando vejo pássaros engaiolados, me dá profunda vontade de abrir suas gaiolas, dar-lhes asas. Da mesma forma, quando vejo humanos presos, me dá profunda vontade de abrir suas mentes, dar-lhes poesias.

Ismael Alexandrino


Ao som de Canto de Pássaros
Degustando Água com Gás
Imagem: 'Canário da Terra' - Tiago Degaspari

domingo, 27 de abril de 2008

Cicio noturno

Poesia

Pai Nosso que estás no Céu,
Como posso chegar mais perto de Ti?

Santificado seja o Teu nome;
Faz-me novo nome em Tua presença.

Venha a nós o Teu Reino
E cria em mim um coração puro, alegre, pacificado.

Seja feita a Tua vontade,
Porque as minhas são cada vez mais insensatas.

Assim na Terra como nos céus
Quero louvar-te, glorificar-te mais.

O pão de cada dia nos daí hoje,
Pois sou demasiadamente humano, e tenho fome.

Perdoa as nossas dívidas;
Livra-me de ser maior pecador.

Assim como temos perdoado nossos devedores,
Peço multiplicares em mim o perdão.

E livra-nos do mal,
Já que as trevas teimam em me assombrar.

Pois Teu é O Reino, O Poder e A Glória para sempre
E urge-me habitar em Teu âmago.

Amém,
Pai Meu.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Aria' - Johann Sebastian Bach
Degustando Granato Vigneti delle Dolomiti Rosso I.G.T. 2002
Imagem:'Fé: Duomo de Milão' - Ismael Alexandrino

sábado, 19 de abril de 2008

Sobre coisas inevitáveis e a vida

Curtas


"Há uma coisa tão inevitável quanto a morte: a vida."

"A vida não é significado; a vida é desejo."

Sir Charlie Chaplin¹



Ao som de 'Wonderful tonight' - Ivan Lins & Michael Bublè
Degustando Torta Alemã


¹Sir Charlie Spencer Chaplin, nasceu em Londres em 26 de abril de 1889, foi ator, diretor e roteirista; faleceu em 25 de dezembro de 1977.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Mixórdia

Poesia


Mania, diz a psiquiatria
Ser um excesso de humor.

Alegria, dizem-me
Ser um excesso de contentamento.

Paixão, dizem por aí
Ser algo incontrolável, avassalador.

Para amor,
Há conceitos mil.

E você, disso que sentimos,
O que me diz?

Ismael Alexandrino


Ao som de 'O bem e o mal' - Yamandu Costa
Degustando Trufas de Uva
Imagem: 'A moça no jardim' - Ismael Alexandrino

sábado, 5 de abril de 2008

Quando secar a grama

Crônica


O céu estava bem mais alegre que nos outros dias. Não havia nuvens densas, nem mesmo aqueles algodões bem branquinhos e esparsos. Mas ainda assim se precisava de um bom agasalho para aquecer o vento frio e seco. De luvas, gorro, cachecol e sobre-tudo caminhei até a estação de metrô como geralmente faço todas as manhãs.

Notei as pessoas mais alegres, empolgadas, e, muitas delas, bem menos agasalhadas do que eu. Desci em frente ao hospital, cumprindo as obrigações de rotina. Uma reunião geral com o corpo clínico, visita aos pacientes, duas cirurgias.

Mas o dia, sem dúvida, era especial. Nada de mirabolante, nenhuma data comemorativa. Mas especial. E muito, para ser bem sincero. Por quê? O amigo leitor deve estar se perguntando intrigado. Até me dá certo receio em revelar, pelo simples fato de ser algo bem comum, e o estimado leitor ficar chateado comigo. E se uma coisa que eu não gosto é contrariar quem me lê. Sim, eu valorizo quem me lê, sempre valorizei. E só escrevo pensando nesses que toleram minhas singelas palavras.

Acho que chegou a hora de eu revelar a “cereja do bolo” que coloria o dia. Ou melhor, aquecia. É, aquecia. Isso mesmo, meus queridos, aquecia. O sol, nosso astro principal da Via Láctea, resolvera aparecer! Estava lá reluzindo a todo vapor, pendurado no céu, bem bonitão, um tanto quanto solitário – é verdade –, mas cheio de charme. Não sei se você já parou para pensar na importância do sol. Não, não..., ele não serve apenas para bronzear donzelas e saradões nas praias de Copacabana, Hawai, Malibu, Cancun, Taiti. O sol é fonte primária de energia! Sem ele, a vida que nós conhecemos hoje, da forma que a conhecemos, provavelmente não existiria. Ele, como fonte primária, nutri as plantas, toda e qualquer sorte de vegetal, através da fotossíntese. E os vegetais servem de alimento para os animais, inclusive o animal-homem. E os animais (que não o homem, claro!) que se alimentam dos vegetais também servem de alimento para o homem. Mas tudo começou no sol. “The first!”, “il primo”, “el primero”, o primeiro!

Caminhei até o Parco Sempione, um majestoso parque que fica atrás do Castelo Sforzesco, em Milão. Um mimo aos olhos, um oásis, um verdadeiro convite à contemplação. O sol secara a grama da umidade costumeira, e uma multidão de jovens, velhos e crianças estavam ali, sentados em roda, outros deitados, conversando, se divertindo, num tremendo bem-estar.

Não hesitei: tirei meu casaco e o fiz de travesseiro. Fiquei longo tempo lendo bem tranqüilo um livro que havia ganhado de uma cirurgiã plástica no Brasil. Depois, meus olhos, cansados de ler, quiseram dormir. E eu não pude contrariá-los ali naquele lugar que só havia satisfação. Dormi longamente naquela grama macia, sendo acariciado por belos raios de sol que passavam por entre as folhas da árvore.

Estou certo de que em praticamente todas as cidades do mundo existe uma praça com grama verdinha, flores, e uma fonte que fica bem mais próximo de onde estamos do que se pode imaginar. Ou mesmo um parque magnífico como este que me serviu de leito. Se ainda nunca teve uma oportunidade destas, experimente sair da frente da TV ou dos corredores do shopping center da próxima vez que o sol aparecer e, enxugando o orvalho, fizer secar a grama.

Ismael Alexandrino, Milão


Ao som de 'A Summer Thing' - Zoot Sims & Bucky Pizzarelli
Degustando Chocolate Quente
Imagem:'Namorando no Paraíso' - Ismael Alexandrino

terça-feira, 25 de março de 2008

Baby Bundas

Artigo


"Querido(a)s amigo(a)s, eu sou Responsável. Mesmo que eu ainda não consiga evitar que o pior aconteça. Eu sou responsável pela minha atitude de indignação contra os inevitáveis males da vida. Eu posso escolher ficar sentado olhando a eterna tristeza dos Baby Bundas, ou eu posso escolher me levantar e viver a minha vida do jeito que eu acredito que tem que ser vivida."




Em algum momento entre 2008 e 2009, a economia dos EUA, Inglaterra e Rússia devem experimentar a pior recessão da sua história. Os economistas do primeiro mundo esperam uma desaceleração radical de todos os meios de produção em função da aposentadoria em massa dos Baby Boomers. O consumo deve cair drasticamente com dois terços dos Baby Boomers se aposentando até o final da década. 80% do melhor do consumo nos EUA, Inglaterra e Rússia é feito hoje pelos Baby Boomers que estão pendurando as chuteiras.

Para complicar o cenário, o alongamento da expectativa de vida das pessoas vai trazer grandes problemas para a vida dos boomers. Os seus pais estão vivendo mais, o que os obriga a sustentar os mais velhos e ainda sustentar os filhos que não se estabeleceram na vida. Estima-se que 67% dos Baby Boomers aposentados vão ficar sem dinheiro ainda em vida. A grande maioria dos Baby Boomers contam apenas com os seus imóveis como fonte de receita quando aposentados. Entretanto, a problemática imobiliária americana já desvalorizou as suas residências em 15%.

Baby Boomers é o termo usado para descrever a geração de pessoas que nasceram no Pós Segunda Grande Guerra entre 1946 e 1964 nos EUA, Inglaterra e Rússia. Foram eles os grandes responsáveis nas últimas três décadas pela consolidação do estilo de vida que a grande maioria das pessoas apreciam: casa, carro, televisão, família, restaurantes, shopping centers, clubes, entretenimento cultural e viagens de lazer.

Há anos se discute o impacto da aposentadoria dessa geração para o nosso futuro. Quem vai substituir os médicos, engenheiros, professores, advogado e arquitetos que estão se aposentando? Os americanos estão realmente preocupados com a questão. Para se ter uma idéia da importância desse assunto, uma busca básica no Google aponta 4.810.000 milhões de páginas sobre Baby Boommers.

O Brasil não está muito preocupado com esse assunto, mas deveria. Vai faltar gente para desempenhar as funções mais básicas da economia: fazer conta e escrever. A coisa vai ficar muito feia até 2010. Nesse momento a Catho está anunciando 2.578 vagas abertas para Engenheiros Civis, 1.451 para Engenheiros Eletrônicos, 2.209 para Engenheiros de Telecomunicações, 8.121 vagas para profissionais de educação, 5.794 para profissionais Financeiros, 14.611 para profissionais de informática e 3.308 para profissionais de logística e suprimentos.

Quem irá preencher essas vagas?

E quantas novas vagas poderiam ser criadas se tivéssemos cérebros adicionais para criar planos de negócios sólidos?

Para cada novo cérebro que soubesse fazer planos de negócios, teríamos 100 novos postos de trabalho, diretos ou indiretos. Para cada novo cérebro que soubesse executar um plano de negócios, teríamos 200 novos postos de trabalho.

Mas, quem irá preencher essas vagas?

Quem? Quem?

Os Baby Boomers tem muitos fãs e críticos ferrenhos. De um lado dizem que os Boomers são os grandes responsáveis pela expansão dos nossos direitos individuais. A causa feminista, os direitos dos homosexuais, os direitos civis, os direitos dos deficientes físicos são algumas das conquistas dessa geração. Além disso, a criação da televisão, a proliferação do rádio e das mídias revistas e jornais permitiram que o indivíduo passasse a ter maior controle sobre a informação que recebe. Por outro lado, os Boomers são acusados de ignorar o futuro e pensar apenas no seu bem estar individual. Investiu-se pesado na construção de fábricas, cidades e carros, deixou-se de lado o meio ambiente.

Quem critica os Baby Boomers são os líderes das gerações que vieram depois, as chamadas Gerações X e Geração Y. Muito provavelmente a sua ou a minha geração.

A Geração X é marcada pela falta de otimismo, cinismo e apatia política no status quo. Os Xs acreditam em Deus, são abertos a todo tipo de religião, mas não seguem nenhuma. A Geração X é caracterizada pela forte tendência ao empreendedorismo fora da caixa. Os Xs criaram a internet, os movimentos de Anti-Globalização e Meio Ambiente. Faz parte da Geração X quem nasceu entre 1964 e 1975.

A Geração Y é sobre quem nasceu entre 1976 e 1994. É a geração dos "sem teto"; não conseguem arrumar um bom emprego que pague o aluguel de um apartamento próprio. É a geração que precisa do dinheiro dos pais Baby Boomers para viver. Entretanto, são geralmente filhos de pais separados, por isso dependem de um ambiente social sadio no escritório para compensar a perda doméstica.

Eles cresceram com a informação na mão, eles têm computador, celulares, messengers, blogs, iPods e toda a tralha da vida moderna. Eles têm tudo, acham que sabem tudo, mas ainda não são nada, nem fizeram nada de realmente relevante com o que sabem.

E pior, estão dispostos a perpetuar tudo que sabem que está errado.

Eu chamo essa geração de Baby Bundas.

Eu chamo de Baby Bundas todos aqueles que têm a informação na mão mas não sabem o que fazer com ela. Não sabem por onde começar e muito menos onde quer terminar.

O Baby Bunda sabe que usar crachá corporativo é ridículo, mas não vêem a hora de pendurar o crachá de diretor da empresa no pescoço para desfilar na hora do almoço; eles sabem que ter carro corporativo é sacanagem com os estagiários que andam de ônibus, mas não vêem a hora de botar as mãos no novo Corolla 2009; eles sabem que chefe com sala grande é uma grande injustiça com os funcionários que têm que trabalhar apertados em micro cubículos sem privacidade, mas não vêem a hora de virarem chefes para ocupar a sala panorâmica com vista para a Berrini ou Paulista; eles sabem que demitir as pessoas pela idade, cor da pele, e origem é puro preconceito, mas não vêem a hora de ter o poder na mão para contratar mulher gostosa, os amigos da faculdade e mudar o escritório para a rua da badalação; eles sabem que corrupção é um dos maiores males da humanidade, mas não vêem a hora de meter a mão no cartão corporativo da empresa para levar cliente para a casa da luz vermelha.

O Baby Bunda é um cego cerebral. O Baby Bunda acredita em regras mesmo quando não as fez; acredita em harmonia mesmo quando não a tem; acredita em certezas mesmo quando nada está claro. Baby Bunda acredita em hierarquias, organogramas, status, popularidade e legado.

Baby Boomers, Geração X e Geração Y talvez não tenham nada a ver com o Brasil. A nossa geração de Boomers não lutou no Vietnã nem muito menos assistiu ao assassinato de um grande líder carismático como JFK e Martin Luther King. Pelo contrário, os Boomers brasileiros se calaram durante a ditadura militar. Eles aproveitaram o momento para fazer o pé de meia, levar um pedaço do pau brasil. A nossa geração X tá comprando agora o primeiro computador, montando agora as suas próprias empresas por falta de opção, se divorciando em igual proporção. A nossa geração Y, bem, a nossa geração Y está bebendo nesse exato momento uma Kaiser, ou tomando uma Brahma na Zeca Hora (Eu nunca vi tanta menina de dezoito anos gorda como agora), atualizando o profile na Orkut, postando comentários em alguns blogs, ou despedaçando o carro do pai no poste da esquina.

Será que existe alguma geração de brasileiros pela qual podemos nos orgulhar?

Eu espero que sim.

Nada menos que isso interessa!

QUEBRA TUDO! Foi para isso que eu vim! E Você?

Ricardo Jordão Magalhães¹, Caçador de Baby Bundas


Ao som de 'Bienal' - Zeca Baleiro
Degustando Lambrusco di Modena
Imagem: 'Völlig überbewertet ...' - Hamburger Jung

Ricardo Jordão Magalhães¹ é consultor de marketing e palestrante, criador e gestor do site BizRevolution.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Sobre saber onde quer chegar

Curtas



Luzes no meio do túnel só existem para quem sabe aonde pisa.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Chão de Giz' - Oswaldo Montenegro
Degustando Espumone
Imagem: 'Corredor da Galeria Vittorio Emanuele II' - Ismael Alexandrino

quinta-feira, 20 de março de 2008

Sala de embarque

Crônica

Nem parece que há pouco mais de seis horas eu estava em outro continente. David, Manu e Benhur me ligaram se dispondo a me deixar no aeroporto em Recife, e estavam mesmo lá. Mas tia Jazeel passaria mais cedo que eles lá em casa. Flávio sairia tarde do trabalho, não chegaria a tempo. Rodrigo bem que tentou, mas o trânsito também o impedira de chegar antes do meu embarque. Mamãe, meus irmãos, e meu amor me ligaram do centro do país me desejando uma boa viagem. Em todos eles percebi certa labilidade emocional, e uma nostalgia na voz ou no semblante.

Viajar para outro país – independente do motivo e do tempo em que vai ficar – causa anseio em quem vai, receio em quem fica. Imagino que a ansiedade e o receio moram no desconhecido. Mas, e na distância, o que mora? Na distância mora a saudade.

E na saudade...Ah!, na saudade... Na saudade mora o amor. Não que não exista amor quando não há saudade, mas é que quando se está perto e não há saudade, parece que o amor fica dormindo. Aquele sentimento bem completo com facetas incontáveis, quando se está perto, dá chance às suas pequenas partes que o constitui aparecerem. Então se percebe o carinho, o zelo, a dedicação, o olhar singelo, a compreensão, o companheirismo. Mas tudo isso intensifica quando há distância, quando há saudade. E aí o amor pulsa, arrebenta o peito como lava de um vulcão incandescente.

Viajar para outro continente – independente do motivo e do tempo em que vai ficar – causa uma dose ainda maior de anseio em quem vai, e mais receio ainda em quem fica. Como serão os costumes? Como a cultura se manifesta? E o aspecto financeiro com as conversões incessantes de moeda? A comida? O transporte? O idioma? E os novos amigos, eles existirão? A cabeça fervilha buscando obedecer ao plano inicial; o coração tenta desacelerar e achar seu ritmo original.

Aqui em Lisboa, onde aguardo uma conexão para o meu destino final daqui a aproximadamente uma hora e meia, aproveito para escrever esta crônica. Está um frio discreto, cerca de dez graus centígrados. O clima ameno me convida a mais uma dose de café quente. Aceito o convite, mesmo sabendo que a cafeína de tal bebida acelerará um pouco mais meu coração ansioso, com certo receio, com muito amor, e cheio de saudade.

Almoçarei em Milão. Certamente, um paraíso gastronômico. Fã que sou da culinária italiana, não tenho quaisquer dúvidas de que meu paladar será saciado. Mas imagino que quanto melhor a companhia, mais saborosa se torna a comida. Lembro-me da palavra “comunhão”, que significa “comer junto”. Comer junto de alguém que se ama deixa a comida mais gostosa. O contrário, comer junto de alguém que não se gosta, tira o sabor das guloseimas. E comer sozinho não chega a ser um destempero, mas falta o toque final que dá o sabor refinado. Como estou longe de todo mundo que amo, imagino que o almoço será gostoso por ele mesmo, mas sem adicionais que possam lhe apurar o sabor.

A voz de timbre metálico anuncia que meu vôo não terá atraso. Olho para o lado à procura de um pão de queijo feito na hora antes de embarcar. Não encontro. E novamente me vêm lembranças. Que saudades do café da manhã que minha mãe prepara cheios de quitutes caseiros preparados com amor! Ah!, o amor... o amor mora nas lembranças; o amor mora na saudade.

Ismael Alexandrino, Lisboa


Ao som de 'Chega de saudades' - Vinícius de Moraes
Degustando Café Expresso
Imagem: 'Sobrevoando Turim' - Ismael Alexandrino