Crônica
Dias desses estava de plantão num dos hospitais em que trabalho. Na sala eu escutava um homem resmungar, rir, ameaçar. Era um turbilhão de sentimentos, sensações diversas, sons bizarros, piadas. Por vezes, notava que as enfermeiras tentavam indagá-lo, ajudá-lo; ouvia-se algum diálogo. Mas na maior parte do tempo o que eu ouvia era o Seu Fulano conversando sozinho, num solilóquio concentrado, aqueles monólogos que nos faz rir.
Terminei de suturar a mão delicada de uma mocinha, lavei-me, e fui ver o que se passava na sala ao lado. "Eu não estava fazendo nada, doutor." -- apressou-se o senhor. Não queria muito saber se ele tinha feito algo ou não, estava mais interessado em ver quantos cortes aquele senhor tinha na cabeça quase raspada. Negro, de boné branco, cheio de manchas de sangue no boné. Um legítimo tricolor.
Pedi os materiais necessários, posicionei o homem, e comecei a me preparar para suturá-lo. Não tinham menos de oito cortes na sua cabeça. Segundo ele, havia sido apedrejado. Suspeitei. A mira de quem o alvejou teria de ser muito boa para acertar só na cabeça. Além do que a forma dos cortes me fazia acreditar de que se tratava de pauladas.
Comecei costurá-lo, enquanto ele não parava de fazer piadas com todas as auxiliares, e com a sua própria situação. Sempre jurando revidar. E sempre falando que não estava fazendo nada com o outro homem que o agrediu. Insistiu tanto nessa fala que não me contive: "Mas Senhor Fulano, o que o senhor estava fazendo com o homem que te agrediu?".
"Uai, doutor...não fiz nada com ele não. Eu estava lá mexendo com a muié dele, mas com ele mesmo eu não fiz nada. Aí ele não gostou e me enxeu de pedradas." A seriedade com que ele disse isso era de comover qualquer cidadão, e fazer acreditar que ele era o Santo Expedito encarnado.
Não me contive. Sem que ele percebesse, dei um discreto sorriso e continuei a completar os mais de vinte pontos na sua cabeça.
Tem coisas que precisam realmente de uma explicação clara para que entendamos e sejamos convencidos.
Agora entendi, Seu Fulano.
Ismael Alexandrino
Ao som de 'Beber, cair, levantar' - Aviões do forró
Degustando Suco de Caju
6 comentários:
Fez nada não Senhor ... rs
Muito bom !
bjs
que figura!!!
elaborando o briefing.
e pesquisando sugestões.
abraço.
p!
Essas histórias de vida real são sempre fantásticas! Texto maravilhoso...
Muito bom! Essa você pode contar em roda de amigos, filhos etc. Grande abraço amigo ... só não gostei muito dessa musiquinha na hora de postar o comentário heheheh
Xiii ...Era uma propaganda que abriu junto com a página....
Muito engraçado essa,deu pra imaginar a cena aqui...rsrsrsr
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