Café Alexandrino - O lado aromático da vida

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A fotografia da letargia

Estou empoeirado. É como aquela laranjeira na beira da estrada de chão batido lá no sul do Pará. Os caminhões pesados, os carros possantes, as carroças pacienciosas, e os andarilhos: todos passam por mim, balançando meus galhos. Mesmo assim a poeira decanta em minha estrutura. Vai descendo por meus veios, cada sulco, cada proeminência, até aos giros.

Também há teias de aranha aqui e acolá. Nestas, por vezes, enrosca-se uma mariposa, uma libélula, ficando prisioneiras do meu estado, morrendo secas, empalhadas.

O verde, outrora brilhante, vivaz, passa despercebido. Uma árvore empoeirada não faz a mínima diferença. Constrange o cenário. Está ali. Apenas. De vez em quando balança com um vento mais forte, ou até mesmo uma batida de algum veículo. Mas não cai, não quebra, não morre. Melhor seria se morresse. Pararia de constranger o cenário e adubaria o solo. Solo árido, rachado. Não há gotas de chuva que possa irrigá-lo, nem lágrimas o umedece. Não há lágrimas. Bobagem pensar que uma laranjeira empoeirada derrame alguma lágrima. E os solidários transeuntes (imagino!) só choraram no dia em que nasceram. E olhe lá. Mais que desnutridos, são desidratados. Desnaturados. Sem vida.

Se olhos ainda os tivesse, talvez o espelho me desse alguma luz, mostrasse um caminho longínquo por detrás da silhueta. Mas a visão ficou embaçada, turva. Só há as imagens registradas noutros tempos. Sem novos registros, não há vida presente. O futuro, não diferente, está preso naqueles anos.

“Sou um presidiário cumprindo sentença”, — diria Vander Lee – grande amigo dos seus amigos –, numa de suas canções. Com a mesma – ou maior! – indiferença.

Quiçá um agricultor corte meus galhos, a seiva escorra, e cresça frondosamente. Talvez o Estado me derrube com uma de suas máquinas do progresso, asfaltando minha morada, petrificando o cenário.

E se nada disso acontecer, que o Deus milagroso me dê uma daquelas safras de dulcíssimos frutos para serem degustados pelas mocinhas que estão de dieta. Ou que, pelo menos, inspire um artista plástico a me pintar e me expor na próxima bienal. Mesmo que assim: empoeirado.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Sem Mandamentos' - Oswaldo Montenegro
Degustando Vinho Tinto Seco Duas Quintas
Imagem: '( D u s t )' - Diogo Gasparett'

Um comentário:

Kari disse...

E quem nunca se sentiu assim? Indiferente aos olhares, vazio de tudo, empoeirado e abatido?

Viver é como uma árvore. Há os dias escutos e sem frutos, mas os dias floridos chegam. Por mais que demorem... Eles chegam.

Beijos