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Conto

Paralelamente à maré baixa de Roberto, ele começou a se apresentar estranhamente mais alegre. Antes sempre duro, bruto até, poderia-se dizer que agora Roberto sorria abertamente para todos os lados. Era freqüente ao retornar da pescaria, sentar-se um pouquinho e contar algumas "histórias de pescador" para as criancinhas que sempre circulavam pela marina ao fim da tarde. Elas o ouviam atentamente e tinham um carinho todo especial agora por aquele 'pescador diferente', como elas o chamavam. Até mesmo em casa, Dona Maria, sua esposa, o achou estranhamente mais comunicativo, dando mais atenção à família e aos filhos, de quem antes sempre mantivera certa distância.
Ninguém sabia o que tinha acontecido a Roberto para ele agora se portar daquele jeito. O tempo foi passando e alguns comentários foram surgindo. Seu Zé da mercearia achava que aquela 'maré baixa' de Roberto era coisa da idade que ia chegando e a habilidade que em conseqüência estava indo embora. Pedro de Cida, freqüentador assíduo da Bodega do Joaquim, dizia que ele estava ficando era louco, por isso não sabia mais pescar. Seu Joaquim, por sua vez, dizia que aquilo era sim coisa do demônio, que ele devia era ter mexido com o que não presta para estar com esse azar. Dona Maria, entretanto, não pensava em nada disso, em nenhum momento tentou entender o que tinha acontecido com seu marido, só começava a se angustiar com o dinheiro que estava indo embora e nada de o marido voltar ao normal. Mas, certo dia, após repensar todas essas idéias que ouvia sobre seu marido na rua, ela não agüentou e disse:
- Ô homem, o que é que tu tem que tu num volta mais com peixe das tuas pescarias? Tu arrumasse outra família e tas levando o peixe pra eles é? Num tá vendo que o dinheiro já não esta dando nem pra comprar comida?
E Roberto respondeu calmamente:
- Maria, eu sei que a situação tá engrossando, mas tenho fé que tudo vai passar e melhorar.
- Melhorar como se tu num pesca mais nada? Ou se o que tu pesca tu tá levando pros outros?
- Maria, não sei se você percebeu o quanto eu mudei de uns tempos pra cá. Em nenhum momento você chegou pra conversar comigo ou me questionar. Preferiu juntar tudo e explodir de vez com essa mágoa, me julgando e me acusando como você está fazendo agora. Foi por isso que não notou que todos os dias eu saia com meu barco não com redes de pesca, mas sim carregado de tabuas. Essas tábuas, Maria, era para construir o meu sonho, um sonho de uma vida melhor para a gente, era para construir um grande cercado de peixes onde pudéssemos ter sempre uma grande criação e tirar nosso sustento sem depender da maré que está cada dia pior. Então, Maria, eu não estava louco, nem possuído por má sorte do demônio nem muito menos sustentando outra família como vocês pensaram. Eu estava apenas acreditando nos meus sonhos. Mas em nenhum momento você parou para perceber isso, preferiu interpretar as coisas do seu jeito, somar com as interpretações maldosas dos outros e aproveitar algum momento de mágoa ou rancor pra jogar tudo isso na minha cara, mais preocupada em me agredir do que em me ajudar ou me entender. Mas não a culpo por isso Maria, infelizmente estou acostumado com essas coisas, é assim que acontece com a maioria das pessoas. Quer saber Maria, pode até ser que o cercado que eu esteja fazendo não dê certo, mas eu só lhe peco uma coisa Maria: nunca queira me tirar o direito de sonhar.
Roberto foi dizendo isso enquanto levantava seus olhos e os voltava em direção ao mar, em um misto de reverência e fascinação.
Ricardo Gurgel
Ao som de 'Amanheceu, peguei a viola' - Almir Sáter
Degustando Chá de Menta com Chocolate
Imagem: 'El Pescador' - Alfred Rogoway
3 comentários:
Menino, vc é um iluminado mesmo!! Que texto lindo! Simplesmente brilhante :P Bjocas, Nanda
Menino, que texto lindo é esse? Uma verdadeira lição de vida para todos nós com certeza!
Aqui não tá inverno não... Tô é bem aperreada com o tempo, que cada dia fica mais curtinho. Mas, tenho lido os seus posts pelo Bloglines. Todos lindos por sinal!!! Este blog está de parabéns. Não sei o que rola, mas você está em uma fase muito boa e os textos andam bem interessantes. Nos passam uma energia deliciosa!
Que a vida por aí esteja gostosa, apesar que sei que vc também deve estar correndo e muito.
Um beijo enorme
Cultivar, acreditar e investir em sonhos! Uma receita que dá sempre certo.
Um conto gostoso, bem escrito e com uma mensagem de grande valor nestes nossos dias de falta de fé!
Beijocas
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