Café Alexandrino - O lado aromático da vida

segunda-feira, 5 de março de 2007

Tempo para tudo

Crônica

Certa vez, ouvi Ronaldo Lindório, doutor em antropologia, contar uma experiência que passara há alguns anos.

Ele estava na África por uma causa bastante nobre: fora incumbido de mapear uma região com intenção de ter acesso a uma tribo indígena. Levava consigo seu ideal e a informação de que se tratava de uma tribo bastante hostil. Aos olhos de muitos, uma aventura desnecessária.

Foi levado ao encontro de dois senhores que lhe serviria de guia. Na busca de maiores informações sobre a tribo, descobriu-se apenas que ela ficava na margem de um dado rio. Há de se convir que não fora uma informação muito precisa, mesmo porque é comum qualquer povo se estabelecer próximo de leitos d'água e, também, tratava-se de um rio bastante longo. Portanto, a informação obtida não ajudara muito.

Amanhecendo, Ronaldo e os dois guias, colocaram as botas, as malas nas costas e embrenharam savana a dentro. Andaram o dia todo e nada de encontrar aquele povo. Não por acaso, no ocaso decidiram parar e descer as mochilas. Ali dormiriam. Andar à noite onde não se conhece não seria uma atitude cônscia. Noite escura e fria, só se ouvia barulho de bichos e nada mais.

Antes do arrebol, levantaram e seguiram viajem. Sol a pino, andaram quase o dia todo, até que encontraram uma maloca. Mas não era a que estavam procurando. A exaustão já tomava conta daqueles homens. Sem condições de seguir viajem devido ao desgaste físico, os dois guias disseram a Ronaldo que não seguiria com ele além dali, pois estavam impossibilitados. Ali dormiram e o jovem, animado por demais, disse que seguiria a viagem, mesmo só.

Botas calçadas, mochila nas costas, rompeu-se o crepúsculo matutino. Região de planície, mesmo com sol ardente, estava totalmente alagada por ser época de chuva. Andava com água acima dos joelhos sempre, às vezes desequilibrando pelo peso da bagagem. O dia foi terminando e o jovem rapaz começou pensar onde dormiria. Afinal, numa savana totalmente alagada ficava difícil. Tinham as árvores, mas as cobras gostam de nelas ficar para dormirem. Como na região tinham muitas, não queria arriscar a concorrência por um galho. Andando mais um pouco, Ronaldo viu uma pedra acima um pouquinho acima da água. Aquela seria sua cama naquela noite. Estendeu a toalha e deitou em cima da pedra. Noite escura, fria, só ouvia-se o barulho de bichos e nada mais.

Até que, não bastasse, começou a chover forte durante a madrugada. Aquilo, literalmente, foi a gota d'água. No meio de um pântano escuro, cheio de bichos, frio, debaixo de chuva, com fome, extremamente debilitado fisicamente, sem forças para prosseguir, Ronaldo pensou o que estar fazendo ali. Talvez fosse loucura da sua cabeça. Afinal, podia muito bem estar em casa, quentinho, de barriga cheia. Coisa que um doutor em antropologia, que já havia recebido vários convites apra ensinar nas melhores universidades sobre o assunto, poderia usufruir plenamente.

Breve momentos de reflexão e...ele não iria voltar dali. Já tinha caminhado muito rumo ao seu objetivo para desistir. Com uma força divina, seguiria caminho ao amanhecer. Dia claro, cessada a chuva, botas calçadas, carga nas costas, e então, salta-se da pedra pântano a dentro. Caminhados não mais que trinta minutos, viu algumas garças ao longe levantarem vôo. Alguma coisa havia feito com que elas voassem. Aproximou. Era, sim, a procurada tribo.

Ali fez todo seu trabalho projetado e, de fato, realizou-se. Contudo, não desistiu. Simplesmente, acreditou no seu ideal, lutou pelo seu objetivo e, confiando que algo divino poderia lhe sustentar, soube esperar seu tempo.

Diante disso, consigo olhar para o horizonte e, mesmo que, às vezes, escuro, nebuloso, distante, arredio, seguir o caminho. Mesmo que, às vezes, pensando desanimar, cansado de caminhar, cansado de sofrer, de chorar, de desilusões, o tempo haverá de chegar. Quem preconizou isso é O mesmo que colocou o ideal no coração daquele antropólogo, que lhe permitiu os dias cansativos, que permitiu a chuva num momento de angústia. Mas também é O mesmo que fez secar a chuva, que fez clarear o dia, que lhe suscitou novo ânimo. E, por mais que intempéries aconteçam, ELE é O dono do tempo e só ele faz as garças alçarem vôo.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Paciência' - Elisa Queiroga
Degustando Leite Achocolatado
Imagem:'Garça' - Ivo Mota

Um comentário:

Caio Paffer disse...

Nossa... Show de bola esse texto.