Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sábado, 11 de agosto de 2007

Sócrates e o Senador Renan Calheiros

Ensaio
Estou relendo o volume sobre Sócrates, da coleção Os Pensadores. As primeiras páginas, porém, chamaram-me particularmente a atenção, pois notei algumas semelhanças (e muitas diferenças!) entre o método e o contexto do filósofo grego e os discursos e caminhos do ilustre senador Renan Calheiros, tocante em especial aos fatos que o envolvem, por todos já conhecidos.

Permitam-me, desde logo, prezados leitores, uma brevíssima digressão para tentar estabelecer uns paralelos.

Se admitirmos como verdade a recorrente afirmativa do Presidente Lula de que “nunca na história deste país” se experimentou tão graúdo crescimento, sobretudo econômico, o contexto do cenário nacional apresenta, guardadas as medidas, claro, algumas boas interseções com a Atenas do século V a.C., o “século de ouro”. De um lado, segundo o governo federal (Era Lulismo), o Brasil avançou significativamente nos programas sociais e vem garantindo a estabilidade econômica, com a inflação sob rédeas firmes. Certo. Não custa reconhecer, embora com as sempre bem-vindas ressalvas, os méritos desse governo, para mim bem melhor que o dos tucanos. Ao contrário: aplaudir as benfeitorias, vigiando atentamente a coisa pública, via de regra serve de alimento vivo para que elas continuem a ocorrer – e por meios lícitos e morais. Aqui a lógica jamais pode ser a de que os fins justificam os meios. De outro lado, o “século de Péricles” representou o ápice da civilização ateniense. Graças à sua frota, Atenas dominou os mares e instaurou uma verdadeira talassocracia. Sob a proteção de Péricles, artistas como os escultores Fídias e Ictino embelezam a cidade com suas obras magistrais, enquanto pensadores de outras regiões do mundo helênico, como Anaxágoras de Clazômena e Protágoras de Abdera, trazem para Atenas os frutos das investigações filosófica e científica, inicialmente desenvolvidas nas colônias gregas da Ásia Menor e nas cidades da Magna Grécia (Sul da Itália e Sicília). Atenas tornara-se, pois, a “Hélade da Hélade”.

Fosse eu mais lúcido, não pensaria em voz alta o que me acabou de vir à mente: o Brasil seria, hoje, a “Hélade da Hélade”; Lula seria Péricles, com a irônica coincidência de ter sob sua batuta o investimento em vários artistas brasileiros, inclusive naqueles que disparam suas pobres máximas sobre ética e moral (quando não as ignoram), como Paulo Betti e Wagner Tiso; e Renan, Sócrates, assumindo o epicentro da política atual (ou politicalha, para lembrar a clássica distinção feita por Rui Barbosa em discurso proferido em 17/09/1917?).

Mas, voltando ao cerne da questão, o que encontrei de semelhante entre o filósofo e o político alagoano? Certamente não foram as cabeças de gado, caro leitor. Aquele, diferentemente deste, não era afeiçoado à pecuária. Pelo menos que eu saiba. Nem essa atividade exprimia o forte da civilização grega em geral, muito ligada aos mares. Ademais, Sócrates sempre se mostrou desprendido de bens materiais. Já o senador... Os lucros agropecuários de Renan impressionam, o que me faz crer que lá em Murici (AL), terra dos Calheiros, as vacas parem umas três vezes por ano, como sugeriu um hilário amigo; mas deixemos isso de lado, por enquanto. Debrucemo-nos sobre o método e o contexto socráticos, identificando a similaridade com os de Renan. O filho do escultor Sofronisco e da parteira Fenareta dedicava-se, com vigor, à atividade de conversar, dialogar, principalmente com os jovens. Mas dialogar de modo que as pessoas justificassem os próprios conhecimentos, virtudes (aretê) e habilidades. Com esse objetivo inicial, levava o interlocutor a expressar opiniões referentes à sua própria especialidade, para, posteriormente, interrogá-lo a respeito do sentido das palavras empregadas. O resultado disso era, com freqüência, tornar patentes a fragilidade das opiniões de seus interlocutores, a inconsistência dos argumentos utilizados e a obscuridade de seus conceitos. Evidenciava-se, assim, a ignorância da própria ignorância. Uns aceitavam submeter-se à fase construtiva da dialogação socrática – uma oportunidade de verdadeiro renascimento, o renascer na consciência de si mesmo; outros, no entanto, enxergavam o desmoronar do prestígio em plena praça pública. Ou, ainda, tal atitude configurava-se o estabelecimento de questões e dúvidas ali onde havia séculos persistia a cega certeza dos preconceitos e das crendices.

Nesse passo, o ex-militante do Movimento Estudantil dos fins da década de 70 dirige esforços, igualmente, para a arte de dialogar (é da mesma forma certo que ele se empenha, com maestria até então desconhecida entre os maiores especialistas do país, no cultivo de gado. Deixemos, todavia e mais uma vez, os gados de lado. A minha teimosa insistência nesse assunto se deve, creio, a uma reprimida vontade de infância de ser fazendeiro, pecuarista, enfim, dono de bois, vacas...). Renan tornou-se, indubitavelmente, um dos mais hábeis e bem articulados políticos da atualidade. E isso, também, em muito o está ajudando a manter-se no cargo. Penso que por pouco tempo. Joaquim Roriz, ainda que longe de Renan em termos de expressão política, caiu por menos, e mais rápido do que a circulação do fato que o derrubou. Através de telefonemas, cartas, encontros pessoais etc., o ainda presidente do Senado apela aos colegas parlamentares, no intuito de ver, novamente, imperar a “cultura da impunidade”, patrocinada, em tempos recentes e com estarrecedora freqüência, por seus pares naquela Casa legislativa, com raras exceções. Apresentando vários documentos e burilando um discurso no fundo cheio de vazios, tentou convencer seus pares de que eles não tinham com o que se preocupar, bem como os argumentos contrários à sua tese restavam indignos de credibilidade.

Além disso, outro ponto assemelha os dois protagonistas deste ensaio: a serenidade da fala. A linguagem e o tom de voz do senador, nas entrevistas e nos debates mais acalorados acerca do tema, demonstram-se serenos – linguagem de quem fala em nome da própria consciência e não reconhece em si mesmo nenhuma culpa. Até aqui podemos traçar razoável paralelo com o método socrático, sempre resguardadas as devidas proporções. Sócrates, entretanto, diferentemente de Renan, não faz concessões, nem tenta costures políticos para safar-se daquilo que ele, justamente, negara. Com Calheiros se dá o inverso, e mais: ao perceber-se meio isolado e pressionado por colegas do próprio PMDB e de outros partidos, sem as achegas esperadas, desce o nível e chantageia seus pares, numa evidência de quem se vê às voltas com a iminente solidão política – desesperadora. O cinismo e a aparente cordialidade cedem, paulatinamente, então, lugar à truculência, à arrogância. O senador se depara com algo comum ao filósofo: a certeza de que mais difícil que evitar a morte é “evitar o mal, porque ele corre mais depressa que a morte” (no caso de Renan, a morte política, mesmo que com direito à ressurreição, graças à brevíssima memória dos brasileiros, em especial dos alagoanos).

Por derradeiro, outra afinidade tange ao aspecto descrença. Concernente a Renan, naqueles fantasiosos argumentos ou nas inconsistentes provas trazidas à colação; no que diz respeito ao filósofo ateniense, nas suas intenções discursivas. Diante do tribunal popular, ele é acusado pelo poeta Meleto, que lhe sugere a pena de morte; pelo influente orador e político Ânito e por Lícon, personagem de pouca importância. Para o nosso fim proposto, faz-se desnecessário detalhar o julgamento. Esse desenrolar é contado por Platão em Apologia de Sócrates, em três partes. Interessa-nos, com primazia, o Renangate. Nesse passo, o senador Demóstenes Torres (DEM – GO) é o poeta Meleto, com cujas poesias Renan disfarçadamente luta, sangra, se enfraquece, se empalidece; Jarbas Vasconcelos (PMDB – PE), Jefferson Perez (PDT – AM) e Pedro Simon (PMDB – RS) poderiam ser o Ânito do legislador alagoano. Uma peculiar diferença, contudo, reside no fato de que, no julgamento do filósofo, este consegue embaraçar um de seus principais acusadores, Meleto. A mestria de Renan não chega a tanto. Melhor para a República e para a sociedade. No Brasil é comum palavrórios substituírem o bom senso, além da deturpação da realidade para conferir-lhe uma roupagem mais agradável. Não obstante, o povo brasileiro precisa responder, indignadamente, a tantas falcatruas, mensalões, dólares, cuecas, vampiros, sanguessugas, gados...! Lembro-me agora do filósofo holandês Baruch Spinoza, quando sabiamente afirma, no capítulo 4 de seu Tratado Político, que “a nação erra quando cumpre ou tolera atos que a levam à sua própria ruína”. E logo adiante aduz com invulgar sapiência, referindo-se aos que encarnam a autoridade política: “eles também não podem dar-se em espetáculo ridículo, ou ignorar abertamente as leis das quais foram os autores. Eles não conservariam desse modo a sua majestade, pois não é possível ser e não ser ao mesmo tempo”. Rezemos para que os brasileiros façamos sentir o peso de nossa indignação, revolta e intolerância com toda sorte de corrupção e imoralidade. Ressuscitemos Spinoza!

Ou será que estas venceram a esperança e todos os valores ético-morais? Penso que não... Não estamos aqui condenados a conviver com o mundo do “descartável”, do “eu”, do descaramento político, da apatia social, da leniência com o crime e do exacerbado relativismo pagão. Resta-nos redescobrir-nos enquanto ser humano, resgatar-nos como consciência viva e nos reinventar, na oficina diária da vida.

Um abraço e até a próxima!

Yuri M. Brandão1


Ao som de 'Esse cara' - Caetano Veloso e 'Poder' - Arnaldo Antunes
Degustando Pizza
Imagens:'A Escola de Atenas'(detalhe) - Rafael Sanzio e 'Renan Calheiros' - Revista Veja


Yuri M. Brandão1 é articulista do Jornal Gazeta de Alagoas, professor de redação e de filosofia, e concluinte de Direito.

3 comentários:

Anônimo disse...

Yuri, a pedido do professor Eduardo Sampaio li seu texto e gostei cara! é um pouquinho difícil, mas tá muito bem escrito. a comparação é muito boa. Parabéns!

Anônimo disse...

Yuri, excelente texto, prazerosa sua leitura. Trazer Sócrates ao contexto em que se encontra o Senador Renan Calheiros deve ter sido uma tarefa árdua, mas com comparações pertinentes. Parabéns pela idéia.

Unknown disse...

Yuri, primeiramente parabéns pelo texto. A leitura me fez lembrar da nossa discussão no Impacto sobre o tema proposto no site do paranaense Dílson Catarino. Quando você esclareceu, que o mundo perfeito está longe de ser alcançado, porém, isso não significa que não podemos caminhar em direção a perfeição, simplismente não se pode ignorar certos atos. Muito bom o paralelo!!!
(caso tenha cometido equívocos me corrija)
Sabe como sou né!...(rsrsr)