Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sábado, 29 de setembro de 2007

O dia em que me senti ladrão

Crônica


Tenho o hábito de tomar café numa livraria do shopping, perto de casa, em Recife. Sempre que possível, um grande amigo me acompanha. David também é um amante deste hábito de tomar café enquanto lê ou folheia algum livro. E hoje, logo após o almoço, tivemos o privilégio de irmos lá prosear. Enquanto folheávamos – sem compromisso – alguns livros, tomávamos um cappuccino com chocolate crocante e um espumone light. Ele quase sempre pede um espumone light. Eu costumo variar mais o cardápio. Ele, não raro, diz estar de dieta. Mas adora estar nos restaurantes que disponibilizam rodízios à vontade. Eu também.

Divertíamos vendo um livro sobre filosofia. Na verdade, era filosofia de bar, de salão de beleza, ou de café, enfim, filosofia que não é levada muito a sério. Existiria alguma filosofia levada a sério? Filosofia é a arte de perguntar, de desconfiar da seriedade das coisas. Penso, sinceramente, que nenhuma filosofia leva as coisas muito a sério. Se levar, vira academicismo, protocolos pré-moldados, busca incessante de resultados – esperados ou não, mas busca incessante – tempo para cumprir, metas a alcançar, objetivos gerais, objetivos específicos. Uma distância considerável das divagações filosóficas.

Pois, descontraídos e desprovidos de seriedade, divertíamos. ‘Aquilo que parece ser, mas não é’, este era o título do livro. Bem filosófico. Metalingüístico, diria. Pois a filosofia é algo que parece ser, mas não é. Parece ser séria. O livro não tem uma proposta maior que a de ser lido em cafés, sem preocupação alguma. É um livro para se impressionar, para sorrir de si mesmo. E o sorriso é inevitável quando o autor mostra um dado objeto, por exemplo, que você jura que é uma forma geométrica, e é outra. Num deles, ele mostra uma gravura em que o plano de fundo é formado por alguns losangos pequenos e coloridos e no primeiro plano há círculos concêntricos. Ninguém que olha tal figura diz que os círculos são concêntricos, a impressão é de que são espirais. Mas são círculos, pode até se provar com a ponta de uma caneta rabiscando o trajeto da linha. Há vários exemplos de ilusões de ótica, exemplos em que nossos próprios olhos nos são infiéis. E eu que sempre acreditei na fidelidade, fiquei desconfiado de mim mesmo.

Depois de várias considerações que não vão salvar o mundo, pitadas de piada, poesia, e afagos no paladar, pedimos a conta. Ele, com vários livros na mão, saiu perambulando pela livraria devolvendo os livros nos respectivos lugares (prática que recomendo). Eu, apenas com um, seguia-o por entre as prateleiras, ainda de bom humor.


Saímos da livraria, e caminhávamos pelos longos corredores e galerias rumo aos nossos carros. Comecei a rir. Ele também, imaginando que eu ria de alguma bizarrice do nosso “tratado de filosofia”. Continuei rindo, mas envergonhado. Minha face corou. Ele sorriu sem graça, tentando entender meu riso, imaginar o porquê meu riso variou do humor ao constrangimento. Notei que ele estava confuso, não sabia se ria ou se perguntava a mim o que era. Voltei a rir sem a feição de envergonhado. Mas, no íntimo, meu constrangimento era enorme. O dele aumentava. Penso que gritava dentro de si um “fala logo o que aconteceu”, quase raivoso.

“Preciso voltar, cara.” – eu disse. Os nós na cabeça dele cresciam em número, tamanho e complexidade. “Pode ir para o carro, amanhã a gente se fala. Preciso voltar.” Sua face revelava uma angústia considerável. “Depois a gente se fala.” – insisti, já dando meia volta e lhe estendendo a mão para me despedir.

Ele não se conteve na sua costumeira discrição. “O que é que aconteceu, cara?” – indagou-me, apreensivo.

“Depois eu te conto, David, preciso ir rápido.” – respondi, afastando-me dele a passos largos.

Entrei novamente na livraria, procurei a seção dos livros nacionais. Relativamente aflito, não conseguia encontrar onde estavam os de crônica, o que sempre fazia com facilidade. Eu olhava desconfiado para os lados à procura de um vendedor. Não que quisesse a ajuda de algum deles. Na verdade, eu não queria que nenhum deles me visse. Meu coração palpitava, e eu tinha medo de que alguém pudesse ouvi-lo. Tinha medo de ser notado. Fui sumindo. Minha vontade era me transformar numa poesia parnasiana, e ficar lá, estático, escondido nas páginas de um livro. Dificilmente eu seria encontrado pelo vendedor ou algum leitor.

Ofegante, parei diante da prateleira trinta e quatro. Era ela. Logo acima da minha cabeça. Bem ao lado de um livro de Rubem Braga, o espaço vazio. Estendi a minha mão, e o completei.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Orange Sky' - Alexi Murdoch
Degustando Capuccino com Chantilly de Menta
Imagem:'Livros' - Dickson Júnior

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá...

Adorei a crônica...rsrsrsr.. pra variar...

Esse negócio de café é uma coisa de louco... É uma vontade que vem e não consigo resistir...E como num passe de mágica...Depois da tão desejada dose... Sinto meu desejo saciado...Viva o Café!!!

Anônimo disse...

Minha primeira vez aqui e, gostei.
Muito bom o texto!
Envolvente!
Adorei!
Beijos no coração e, voltarei mais vezes.

Anônimo disse...

"Minha vontade era me transformar numa poesia parnasiana, e ficar lá, estático, escondido nas páginas de um livro. Dificilmente eu seria encontrado pelo vendedor ou algum leitor."

Hahahahahaha, seu maldoso!
Muito bom texto, como de praxe!
;)