Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sábado, 4 de março de 2006

Dona Cleuza

Conto

Estava exausto. A noite chuvosa reduziu o número de pacientes. Mas um plantão de emergência do coração, é sempre um plantão muito cheio de emoção. Gritos de desespero, de dor, de desamor. Sorrisos assustados, de alívio, de gratidão. Agito total, parada súbita. Silêncio constrangedor.

A madrugada chegou e tentei achar descanso num sofá puído. Fazia um frio artificial, fervilhavam algumas reflexões. O pensamento acelerava na medida em que a freqüência do apito no aparelho da sala ao lado diminuía. Em poucos minutos, mais um apito de vida calaria a voz. Talvez antes que o sol nascesse.

Como temia, antes do dia nascer, pude fitar os olhos opacos e sem reação de dona Cleuza.

Fui para casa tomar um banho. Debaixo do chuveiro eu não pensava em nada muito filosófico, apenas sentia aquelas gotas frias lavarem minha alma e refrigerarem meu corpo.
Limpo, percebi que meu estômago estava vazio a mais de doze horas. Desci com o intuito de comer algo no calçadão da praia. Nada muito pesado. Nada
que me saciasse por completo. A vida precisava sentir um gosto de querer mais.

Ao aproximar-me da faixa de pedestres, pude ouvir uma voz que ressoava
muitos anos vividos. Talvez, quase um século. "Você vai atravessar a rua?" Vou sim!, disse-lhe sorrindo. "Posso atravessar com você? Sinto-me insegura." Claro!, sorri novamente. Esperamos mais uns sessenta segundos até que o sinal esverdeasse nosso caminho.

Já na calçada, do outro lado da avenida, aquela senhora de feição suave agradeceu-me e me desejou bom dia. Bom dia! Qual o nome da senhora? "Cleuza. Mas pode me chamar de Dona Cleuza.", esboçando-me um sorriso. (...) Sim! Tenha um dia tranqüilo, Dona Cleuza!

E desejei realmente que a Dona Cleuza tivesse um dia bem mais tranqüilo que a noite de dona Cleuza naquele hospital.

Ismael Alexandrino

Ao som de 'Como nossos pais' - Elis Regina
Degustando Chá de Hortelã com Pão Integral
Imagem: 'Auto-retrato' - Marcus Davis

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2 comentários:

Anônimo disse...

como eu adoro esse café....
+ acho que nunca dexei nenhum trocado aqui né...para os cafés que degusto!
rs!
então...deixo pra vc...uma nota de "um cruzeiro" entre o pires e a xícara...

Se é a moeda corrente? depende da sua mente....para mim, vale muito mais que a atual...

Anônimo disse...

Olá, qto tempo não degusto este café... está delicioso, como sempre. Silêncio em mim ao ler este conto, esta realidade doída de um plantão de emergência hospitalar. Muito real e emocionante. Beijo meu e boa semana.