Conto
Estava exausto. A noite chuvosa reduziu o número de pacientes. Mas um plantão de emergência do coração, é sempre um plantão muito cheio de emoção. Gritos de desespero, de dor, de desamor. Sorrisos assustados, de alívio, de gratidão. Agito total, parada súbita. Silêncio constrangedor.
A madrugada chegou e tentei achar descanso num sofá puído. Fazia um frio artificial, fervilhavam algumas reflexões. O pensamento acelerava na medida em que a freqüência do apito no aparelho da sala ao lado diminuía. Em poucos minutos, mais um apito de vida calaria a voz. Talvez antes que o sol nascesse.
Como temia, antes do dia nascer, pude fitar os olhos opacos e sem reação de dona Cleuza.
Fui para casa tomar um banho. Debaixo do chuveiro eu não pensava em nada muito filosófico, apenas sentia aquelas gotas frias lavarem minha alma e refrigerarem meu corpo.
Limpo, percebi que meu estômago estava vazio a mais de doze horas. Desci com o intuito de comer algo no calçadão da praia. Nada muito pesado. Nada
que me saciasse por completo. A vida precisava sentir um gosto de querer mais.
Ao aproximar-me da faixa de pedestres, pude ouvir uma voz que ressoava
muitos anos vividos. Talvez, quase um século. "Você vai atravessar a rua?" Vou sim!, disse-lhe sorrindo. "Posso atravessar com você? Sinto-me insegura." Claro!, sorri novamente. Esperamos mais uns sessenta segundos até que o sinal esverdeasse nosso caminho.
Já na calçada, do outro lado da avenida, aquela senhora de feição suave agradeceu-me e me desejou bom dia. Bom dia! Qual o nome da senhora? "Cleuza. Mas pode me chamar de Dona Cleuza.", esboçando-me um sorriso. (...) Sim! Tenha um dia tranqüilo, Dona Cleuza!
E desejei realmente que a Dona Cleuza tivesse um dia bem mais tranqüilo que a noite de dona Cleuza naquele hospital.
Ismael Alexandrino
Ao som de 'Como nossos pais' - Elis Regina
Degustando Chá de Hortelã com Pão Integral
Imagem: 'Auto-retrato' - Marcus Davis

2 comentários:
como eu adoro esse café....
+ acho que nunca dexei nenhum trocado aqui né...para os cafés que degusto!
rs!
então...deixo pra vc...uma nota de "um cruzeiro" entre o pires e a xícara...
Se é a moeda corrente? depende da sua mente....para mim, vale muito mais que a atual...
Olá, qto tempo não degusto este café... está delicioso, como sempre. Silêncio em mim ao ler este conto, esta realidade doída de um plantão de emergência hospitalar. Muito real e emocionante. Beijo meu e boa semana.
Postar um comentário