Café Alexandrino - O lado aromático da vida

segunda-feira, 6 de março de 2006

Eu-rio

Crônica

Nem sempre tudo acontece como nos agrada. Aliás, com freqüência, rotineiramente, algo nos contraria. Há ações, há fatos, que, se pudéssemos, com certeza impediríamos sua realização. Há pessoas, que, se pudéssemos, também não deixaríamos ir, e outras tantas acolheríamos para sempre. Há sentimentos, que, por vezes, tenta nos rondar e se fôssemos capazes sempre, os mandaríamos para bem longe. Mas mesmo estes, às vezes, também nos acomete.

Encaro essa tentativa de injúria, essa fuga do nosso controle, essa contrariedade da nossa vontade como algo normal, passageiro, como um rio. Sim, um rio.

Assim como nós, o rio não se contém nas entranhas terrestres e então rebenta. A esse parto não chamam de "luz", mas nascente. Geralmente a nascente tem águas bem cristalinas. Ainda bem novinho, o rio já dá seus primeiros passos, faz suas primeiras e sinuosas curvas. Vai nutrindo-se aos poucos aqui e acolá. Come uma fruta, uma folha, engole uma raiz, um bichinho, bebe de outras águas, e assim vai se sustentando e crescendo. Talvez ele tenha uma vantagem em relação aos humanos: quando novo, não costuma engasgar. Aqui excluo as regiões muito secas, onde há rios intermitentes, que secam em certos períodos do ano.

Daí, bem alimentado, forte, ele segue seu caminho. Vira para a direita, sobe o nível – sim, o rio sobe o nível! Às vezes, corre para cima –, vira para esquerda, dá uma longa descida, depois mais uma bem rápida....Encontra alguns galhos e os leva consigo sabe Deus até aonde. Não raro, os rios encontram pedras pelo caminho, mas não as chutam e muito menos as xingam, ou lhes mostram gestos obscenos. Eles se compadecem, rodeiam as pedras ou as pulam e, quase sempre, até as lavam deixando-as belas. Às vezes o rio pára para descansar numa sombra. Ali ele enrola, enrola, pensa em voltar, mas segue em frente. Caudaloso e com postura elegante. O rio se renova. Tudo isso, segundo a sua vontade. Aí um detalhe: há vontade!

Contudo, algumas vezes vêm as chuvas e o faz derramar de tão cheio. Ele fica nervoso, enfurecido, perde o controle e não se preocupa com o que está à frente. Passa por cima de tudo, demolindo. Quando está assim, é melhor nem chegar perto. Outras vezes, chega um senhor de chapéu em cima de um trator e com petulância empurra terra em seu leito, joga terra em seus olhos, o empurra mais para lá, invade seu espaço. A todas essas coisas, porém, ele – o rio – não pode impedir. Mas o rio aprende a lidar com elas. Quanto às chuvas, tão logo elas passam, ele volta a se acalmar arrependido dos estragos que causou deseducadamente. Quanto à soberba humana em invadir o seu espaço, depredá-lo, ele – o rio – humildemente dá o seu jeitinho. Propõe um convívio mais superficial, ou procura outro caminho. Muitas vezes passa fome e até sede, mas sempre dá um jeito. Quão sábio são os rios!

Talvez se fôssemos mais rio e menos represa, melhoraríamos nossa caminhada e convívio social. As represas, os lagos, as lagoas – águas paradas que são – recebem tudo passivamente, águas boas e ruins, limpas e sujas. Recebem pedregulhos e os sedimentam, recebem sujeiras e, absorvendo-as, guardam-nas para si. Nada fazem para se renovarem. Contentam-se com uma pífia e lenta vaporização. Na verdade, geralmente é onde o rio morre, sua foz. Tornemos nosso dia-a-dia semelhante a um rio. E nessa congruência, atentemo-nos para a constante dinâmica em busca do equilíbrio.

Ismael Alexandrino


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Imagem: 'Cataratas' - Adri Furtado

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