Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Vendo minha felicidade

Crônica

Sempre gostei muito de andar de bicicleta. Já tive várias. Algumas, bonitas. Outras, funcionais. A primeira, lembro bem, era verde-folha, bem pequena, mas já sem as rodinhas laterais. Custou-me aprender domá-la. Valeu-me os dois joelhos esfolados. Foi o preço que paguei por aprender andar sozinho, sem que ninguém soubesse que eu já sabia. Aliás, acho que por isso que tenho tanto apreço pela bicicleta, ela sempre me foi companheira nos momentos de solidão, desde nosso primeiro contato.

Mamãe havia viajado, papai saído para o trabalho, e minha babá não era muito afim de me ensinar essa prática de liberdade. Sim, porque andar de bicicleta é exercer a liberdade. Sentir o vento frio da montanha, a brisa do mar, parar para contemplar o sol acenar que já está indo dormir, parar para ver o luar, não parar. Tudo isso, não é outra coisa, senão uma gostosa liberdade, bastando, para tê-la, somente, querer.

Quando mamãe voltou da viagem e o papai do trabalho, eu já estava lá, perito em equilibrar em cima da magrela. Machucado, é verdade, mas feliz. Descobri que, ao buscar a felicidade, às vezes, nos machucamos. E é verdade, acreditem.

Minha relação com a bicicleta é recheada de contentamento. Já foi de amor, aquele bem racional, comedido, e também já foi de paixão desvairada, arrebatadora. Sempre muito profícua. Mas nunca de ódio. Odeio é ter de ficar longe dela por muito tempo.

Agora, por exemplo, eu não queria fazer dez horas seguidas de trilha como já fiz, nem pedalar cem quilômetros ininterruptos no asfalto. Queria mesmo era montar numa daquelas mais clássicas, estilo retrô, vintage mesmo, e pedalar despreocupadamente às margens de um rio suíço, na encosta de uma montanha, sob um sol ameno, num vento cortante, protegido com luvas de lã, respirando cheiro de flores no caminho.

Mas ela está à venda. Fará companhia para sempre a outro que, com certeza, não a cuidará como sempre cuidei. Será usada sem carinho, será usada sem compaixão. Será usada, tão somente. Nunca mais será amada como a amei. Não poderei viver ao lado dessa menina esbelta e morena que só me trouxe felicidade.

Digam aos demais, por favor, que a estou trocando por um pedaço de pão. Se não posso mais viver, preciso alimentar o outro que sobreviverá em mim. Pelo menos, até que eu chegue um dia, quem sabe, numa encosta à margem de um rio e a encontre -- novamente, sorrindo para mim -- me esperando para passearmos livremente, e felizes, pregados na mão.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Paciência' - Lenine
Degustando Chá de Menta com Pingos de Chocolate
Imagem:'Pelo caminho' - Alain Filliol

3 comentários:

Anônimo disse...

Impressionante! Parabéns! Visitei seu blog atraves de um amigo que já conhecia. Adorei!

Anônimo disse...

Quem sabe os caminhos dessa bike estavam inadequados a seu meio e a seu tempo, e com uma necessidade de buscar, em suas próximas pedaladas, as coordenadas, companhia, conforto, carinho... mesmo que tudo isto insista em vir acompanhado da dor e às vezes até mesmo por meio dela.
Assim sao as bicicletas...

Anônimo disse...

Entregue com sentimentos ao subliminar. O caminho não mais se segue com pedaladas...
Outra etapa se inicia. Seja, talvez, chegada a hora de mais um ciclo de aprendizados, descobertas, de testar novamente os limites, e, assim, da dar um giro a um novo caminho, ainda desconhecido e não demarcado pelas estradas percorridas.
Viaje no tempo e sinta-se uma criança, que ousa dizer que a vida é sempre um doce mel.
Abraço!