Café Alexandrino - O lado aromático da vida

domingo, 3 de junho de 2007

Humanizar um bicho

Crônica

Há mais de meio século, Manuel Bandeira viu um bicho. O mundo ainda soprava a fumaça da primeira guerra mundial, Hitler levantava a suástica da eugenia como forma de terceira via. Mussolini, o fascismo defendia. Enquanto Nova Iorque definhava com a maior crise que o capitalismo já viu. No Brasil, paulistas e mineiros tomavam café-com-leite, enquanto Luís Carlos Prestes estimulava revoltas políticas e sociais nos quatro cantos do país, minando as estruturas da Velha República. Idealistas. Porém, elitistas. Golpistas. Contudo, reformistas. O tenentismo, então, revelara-se prova inconteste de um movimento de difícil entendimento, explicação e razão de ser.

Em meio a essa balbúrdia, num modernismo que acabara de florescer, ainda em sua primeira fase, Bandeira se valia da poesia para descrever a realidade do país de forma eufêmica. Seu lirismo, na descrição humana, não só traduzia o contexto de miséria vivido, como já antevia futuros períodos indecorosos.

Na imundície do pátio, ainda há pouco, não sabia o que via. Ele não catava comida e detritos. O pátio que se encontrava era muito longe do refeitório para fazê-lo. Se bem que essa distância não diz muito. Mas, sinceramente, acho difícil alguma comida se distanciar por mais de quinze metros daquele refeitório sem ser devorada. O fato é que ele não cheirava aquilo também. Aquele lixo não fora confeccionado como os outros, para termicamente guardar as guloseimas para os ratos. Inútil seria cheirá-lo a fim de ativar os quimioreceptores, e estimular a liberação de secreções digestivas. Engolia vorazmente.

Confesso que não sei se aquela ingestão seria capaz de injuriar aquele ser. Muito embora, aquela víscera estivesse totalmente maligna.

Costumam dizer que a pobreza e a fome são o câncer da sociedade. Fico pensando, então, quão patógeno socialmente seria aquela criatura.

Mas no mundo da cibernética e robótica, que valor tem aquela vida? Aliás, aquele suspiro?....Insignificante pós-revolução industrial. Num mundo em que a busca incessante é pelo petróleo, e outras formas de energia, de que vale aquela criatura? Quanto custa aquele mísero e moribundo ser? Qual o seu preço?

Sem se dar conta dessas questões, os poderosos só pensam em brincar. Como num vídeo-game, atacam sem escrúpulos terras alheias. Como acham que estão numa boa festa, não lhes faltam foguetes potentes. Depois, dizendo que serão intoxicados pelo anfitrião, desarrumam sua casa, rouba-lhe a comida, sua energia, e ali se sitiam ao bel-prazer.

Quando cansam daquela estadia, saem para promover novos espetáculos, novas confraternizações. E olha que são marketeiros! Passam na televisão ao vivo e tudo. Só não têm muita ética nas propagandas, pois a maioria delas fere o terceiro e o quinto artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Artigos esses que garantem a vida e repudiam os tratos desumanos. Ainda querem propor livre comércio com a terra verde-loura. Imagine se descobrirem mais petróleo na bacia de Campos, e os tupiniquins não propuserem exportação para eles livre de impostos. A festa será em nossa casa.

Nesse hedonismo desvairado, fica-se à espera de grandes feitos, anseia-se pela próxima campanha. E quando ela vem, contenta-se em discar 0300-num-sei-quanto-num-sei-quanto e doar o que sobra do mês. Não que doações, principalmente as financeniras, sejam desnecessárias, não é isso. Só que, contentar-se com elas, é equivocar-se de que se está com o dever do cidadão cumprido. Uma atitude, no mínimo, cômoda.

Portanto, o que preconizo, não é a realização de intentonas comunistas, que são capazes de percorrer 25 mil quilômetros e só conseguir enfraquecer um governo e nada mais. Não é levantarmos bandeiras de vias alternativas grotescas. Não é exaurirmos o capitalismo até as últimas conseqüências. Não é invadir terras alheias, de forma violenta e desordeira. Melhor seria se espelhássemos nas formiguinhas, e, cada um, a cada momento possível, fizesse bem o seu papel. Coisas simples, nada de mirabolante.

Poderia começar dando um prato de comida a um indigente que bate à sua porta. Ou parando na faixa de pedestres ao sair de casa. Não furando semáforos, não instigando a ira em outrem mostrando-lhes gestos obscenos. Suportando a fila sem provocar tumulto. Guardando o papel de balinha no bolso para jogá-lo no lixo depois. Sorrindo para o chefe, ou o empregado, no trabalho quando não se é bem compreendido. Dando uma informação precisa a um paciente debilitado no corredor de um hospital e, se possível, ajudá-lo indo com ele onde for preciso. Cumprimentar quem passa rápido por você ao menos com um balançar de cabeça e um sorriso espontâneo. Acredite, neste momento você o sensibiliza mesmo que ele não tenha consciência disso. Lutar pela justiça outrora perdida, zelar pela lisura de atos. Lembrar que existe um SER que é justo acima de nós.

Talvez assim, quem sabe, evitemos que alguém como eu ou você almoce um tumor maligno. Talvez evitemos que seja visto, por alguns, como uma simples fonte de energia, e, que maior valor teria, se estivesse num biodigestor sendo remoído, como fazem com os lixos e os estrumes de animais. Talvez o livrássemos da condição de bicho dando vida a um poema. Talvez consigamos fazer do homem um ser humano. Talvez.

Ismael Alexandrino


Ao som de 'Gentileza' - Adriana Calcanhoto
Degustando Pão e leite
Imagem:'Lixão fonte de sobrevivência' - Fábio Matavelli

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