Café Alexandrino - O lado aromático da vida

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

O amor no tempo da república

Conto


Era uma casinha de taipa. A região de grandes platôs recortados por imensos paredões delineava o quintal daquele casebre no Planalto Central. Quem nunca ouvira falar no Planalto Central? Aquele mesmo. Aquele que fora escolhido para se edificar a capital federal. Justamente naquele rincão sem fim começa nossa história.

O alpendre baixinho, me fazia curvar todas as vezes que eu queria entrar. Curvava-me triplamente. Pois ainda curvava retirando o chapéu para o Seu Sinhô pai da moça e também quando a mão dela eu ia beijar. Que tez era aquela! Ainda posso senti-la nos lábios. Parecia a moça ideal. Fora ali bem perto, bem pertinho de onde se ergueria a capital federal.

Logo após meados do século, no afã da minha juventude, entrei num bom emprego e consegui um contra-cheque. Naquele mesmo ano, assumia a presidência Juscelino Kubitschek. Vibrei muito e, como entregador de cartas, sabia que o encontraria nos corredores. Aquilo para mim, que vinha de uma família de lavradores, era o máximo. Quem diria, Adalberto da Silva trocar a enxada pela bicicleta; parar de capinar e entregar marmita para entregar cartas todinhas em ordem?! Que progresso!

Todo sábado, depois de separar as cartas que entregaria na segunda, montava na possante amarela e pedalava nos corredores das chácaras rumo à casa da minha menina. Naquele corre-corre, parecia um lobbysta. Durante a semana nas salas provisórias da presidência e nos períodos de folga nos corredores rurais.

Pouco tempo empregado, fiquei noivo. Casaria no final do ano. De fato estava muito animado. Era uma época de uma euforia total em torno da construção da nova sede do governo. Enquanto a capital crescia, explodia no meu peito um amor cada vez maior por aquela donzela. Na verdade, confesso que não me lembro se ela ainda era donzela naquelas datas. Seu Sinhô que me perdoe, mas é que realmente a euforia era grande.

Toda a equipe do governo foi transferida pr'aquelas bandas. Em meados de junho, quando separava as correspondências do dia para serem entregues, uma delas me chamou a atenção: "À Senhorita Eleonora Lemes (Chácara Ribeirão das Perdizes, km 14)". Fiquei ansioso, pois estavam recrutando muitas pessoas para trabalhar no governo naquele período. Se Eleonora conseguisse um emprego, poderíamos antecipar nosso casamento para agosto. "Maravilha!" Pensei. Montei na cargueira-canarinho e voei naquele cerradão. Deixei a carta no vaso de plantas que ficava em baixo da janela do quarto do meu futuro sogro – Seu Sinhô –, pois haviam saído pra visitar um tio.

Custou-me esperar a chegada do sábado para tomar conhecimento do teor da correspondência. De longe, avistei Lê sentada debaixo de um pé de pequi perto da casa. Ela e dona Benta. Dona Benta me cumprimentou com um gesto e retirou-se para dentro do casebre. Achei um pouco estranho. Então Eleonora me disse que havia recebido uma proposta para mudar para cidade, para ser secretária do procurador da república e morar com ele. Sorri amarelo, peguei na sua mão e, por um breve instante, ouvi o silêncio gritar. Ela estava decidida. Queria melhorar de vida.

Depois de quase meio século, debruçado em pernas cansadas e repousando em cabelos grisalhos, ainda sinto aquela euforia me sufocar. Já com a vista um pouco embaçada, vejo uma estrada que levava até aquela casinha. Também vejo a porta do planalto em que tantas vezes entrei para levar cartas para o procurador. Sinto o perfume da secretária, vestida de terninho e cabelo amarrado, a filha de Dona Benta e do Seu Sinhô. Não conformo, contudo, que um simples carteiro entregara a propina, e fora o lobbysta do seu próprio amor.

Ismael Alexandrino


Ao som 'Esperando na janela' - Gilberto Gil
Degustando Cafezinho Preto
Imagem:'Casinha da Eleonora' - Ismael Alexandrino

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