Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Sem motivo

Crônica

Você sempre vira as costas quando ainda estou falando. Eu me irrito com sua pressa em me ferir. Despeja mentiras e sai apressada do veneno. Fico sozinho com a minha ansiedade em fazer as pazes.

Provoca para que corra atrás. Corro porque não suporto o vento parando meus ouvidos. Sobe meu sangue, encrespa as veias. Eu levanto a voz para me defender e já diz que estou gritando. Não fiz nada senão erguer a voz para o tom da sua, para que me escute e não somente seu próprio apelo. Tanto faz, agora avisa que estou gritando. Grita que estou gritando. Sua teimosia impede arrependimentos. Agora começou a briga e não voltará atrás, não mostrará humildade para desistir, não aceita recuar, não pedirá desculpa.
Seu orgulho me pressiona, tenta me convencer a todo custo que tem razão. Vai aguardar que eu diga alguma ofensa para inverter os papéis e denunciar que a ofendi. Fareja a insanidade.

Seus olhos zonzos, inofensivos, pescam meus desaforos ao longe. Enganei-me com a doçura. Fixa a minha boca para afastar o beijo, espera o cardume surgir da espuma da raiva.

Contenho-me, busco diminuir o ritmo, usar a calma de adulto que treinei na infância. Não descubro o que está querendo. Não a entendo, permanecia quieto e calmo esperando que voltasse do trabalho: os cabelos ainda se acostumando à noite. Chegou disposta a desalinhar o quarto, cobrando que não atendi o telefonema, mas sequer o ouvi pelo barulho do ar-condicionado. Passa a me xingar para que eu retribua. Dá mais comida aos peixes da minha boca, mais isca, mais ração. Puxo a corda, enganado pela fome. Nossos vizinhos já conhecem o nosso relógio biológico. Não se assustam com os trincos no chão, com sua pontualidade em testar mais uma vez minha paciência.

A briga não oferece sequer um motivo, teve que arrumar desesperadamente um motivo durante a briga para se justificar.
Quando percebe que perderá a disputa, quando se confunde e não responde, inicia seu cinismo. Ameaça procurar um apartamento na próxima semana. Diz que não vai se importar mais comigo. Você é extremista: se não é do seu jeito não será de nenhum. Pode ficar com razão, a razão nada entende de nosso desejo. Nunca entendeu. A razão é o que menos importa ao amor.

Fabrício Carpinejar


Ao som de 'Lost for words' - Pink Floyd
Degustando Café Preto
Imagem:'De uma estação ausente: só, contigo' - Nega Teven

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