Café Alexandrino - O lado aromático da vida

domingo, 20 de maio de 2007

Italo Bianchi, o Cronista em Dialogismo com a Sociedade

Artigo


Italo Bianchi em uma de suas plataformas de composição

Em um debate com Karl-Otto Apel, Jacques Derrida afirmou que a comunicação não existe. Apel declarou que concordava. Abruptamente, Derrida não deixa por menos e diz: “Então eu me expressei mal”.

Tendo o pós-estruturalista Derrida como escopo, em sua verdade exponencial, declino-me para apresentar a expressiva forma de dialogismo do cronista Italo Bianchi com o seu público através de crônicas regularmente publicadas em jornais e em livros.

De sua esferográfica, saem engenharias de composição, cujas plataformas – quando bem observadas – facultam-nos sólido repertório e, sobretudo, ensinam-nos a escrever com maestria.

Enuncividade, enuniatividade, conteúdo programático, progressão temática, paralelismos, uso de elementos de coesão. Eis algumas de suas impressões decantadas com inteligência que asseguram uma composição clara ao seu leitor.

Em meio a inúmeros livros que nos orientam a escrever, Italo Bianchi ora nos lembra a filosofia de composição de Edgar Allan Poe, ora nos faz recordar A Fórmula do Texto, de Wander Emediato. Há matemática aplicada em seus textos. Embora não use números, sua relação com as palavras garante somas, subtrações, multiplicações e divisões concretas.

Tenhamos Os cantinhos da Casa, crônica sua publicada em 25 de novembro de 2004, como ilustração para este artigo.


A MATEMÁTICA DO CRONISTA COM AS PALAVRAS

Seu texto já traz no primeiro período enuncividade e enunciatividade. Aquela é o fato, é a objetividade; esta é a leitura sobre o fato, é a subjetividade. Mas o fato deve se sobrepor, pois seu propósito é a composição de uma crônica. E assim ele o faz com esmero. O substantivo “desgraça”, o adjetivo “desolados” são gotas – embora expressivas – no oceano enuncivo: “Dias após a desgraça do Areia Branca, quando o edifício virou escombros, um dos desolados ex-moradores deu entrevista lamentando, acima de tudo, ter perdido os cantinhos da casa”. Eis o primeiro período muito mais enuncivo, mas com a enunciatividade inclusa, sobretudo com o emprego de duas classes de palavras. Esta fusão garante paralelismo. Proporciona a inclusão de um sentimento coletivo, faculta o lamento de uma sociedade, cujos olhos testemunharam os escombros. As toneladas de concreto ao chão sentem o olhar pesado de uma sociedade sobre os escombros.

O uso da figura de construção chamada comparação no período seguinte intensifica esse pesar. Confira: “Mais do que o risco de morte que tinha corrido, mais do que a perda de um patrimônio, mais do que a situação de sem-teto na qual se encontrava agora, o desafortunado lamentava ter perdido para sempre os cantinhos da casa.” Eis todo um período – seu segundo período na crônica – tomado o lugar de um advérbio de intensidade. Eis uma locução adverbial frasal expressando o choro de uma perda não mensurada ou calculada em moeda corrente. Agora, quem se eleva é a enunciatividade. Ou melhor, enuncividade e enunciatividade estão em um mesmo patamar.

O quarto período é iniciado pela conjunção explicativa “Pois”. Antes, há um ponto. Não é comum o emprego do ponto, mas de vírgula. Só que o cronista quer um espaço maior para se recompor em meio ao que sente, em meio a queda do prédio, em meio – melhor dizendo – do cantinho perdido. Volta-se para um comício dentro de sua própria alma. Já não está o autor em seu espaço extrínseco. Aguardemo-lo, nobre leitor. Ele há voltar com vozes interrogativas. Enquanto isto, acompanhe o terceiro e o quarto parágrafo: “Ainda que feito sem maiores detalhes, o depoimento me tocou profundamente. Pois fiquei imaginando a importância emocional que tais cantinhos deviam representar na vida daquele senhor e os motivos que o levaram a fazer, de pronto, esta declaração.” O uso do fragmento “...me tocou profundamente” exigiria retomar o fôlego e voltar-se para as variações de seu imaginário.

E a voz do cronista se inquieta em seu texto, chegando com uma outra figura de construção, a interrogação. Com esse instrumento de nosso idioma, o leitor atento se depara com as inquietudes de quem testemunha a enuncividade. Observe, caro leitor: “Por que numa hora de tanta infelicidade alguém pode externar como dano maior algo que pertence exclusivamente à sua intimidade? Ou seja, declarar como prejuízo irreparável o valor sentimental de determinados retalhos de ambientes?” Temos o quinto e o sexto parágrafo. A segunda interrogação é metalingüística, isto é, o esforço de quem escreve para dar conforto ao seu leitor. Está o cronista próximo de seu leitor. Busca ser compreendido no que declara. Quer a comunhão do seu leitor.

Eis todo o primeiro parágrafo, enfim, ou seja, os seis períodos que constituem o primeiro parágrafo de seu matemático parágrafo:

“Dias após a desgraça do Areia Branca, quando o edifício virou escombros, um dos desolados ex-moradores deu entrevista lamentando, acima de tudo, ter perdido os cantinhos da casa. Mais do que o risco de morte que tinha corrido, mais do que a perda de um patrimônio, mais do que a situação de sem-teto na qual se encontrava agora, o desafortunado lamentava ter perdido para sempre os cantinhos da casa. Ainda que feito sem maiores detalhes, o depoimento me tocou profundamente. Pois fiquei imaginando a importância emocional que tais cantinhos deviam representar na vida daquele senhor e os motivos que o levaram a fazer, de pronto, esta declaração. Por que numa hora de tanta infelicidade alguém pode externar como dano maior algo que pertence exclusivamente à sua intimidade? Ou seja, declarar como prejuízo irreparável o valor sentimental de determinados retalhos de ambientes?”

A ANALOGIA DE ENUNCIVIDADES

Há comparação por igualdade, comparação por inferioridade e comparação por superioridade. Com o advérbio “igualmente”, o autor utiliza todo o seu segundo parágrafo para fazer analogia entre fatos, só que um externo a nós e o outro interno a nós. Mas o primeiro parágrafo de sua crônica assim o fez. Portanto, em seu segundo apartado, o cronista apenas faz a leitura do que vivenciou no primeiro. E o fragmento “traçando um paralelo” denuncia sua intimidade com a matemática. Veja, leitor atento:

Refletindo, no momento, sobre a imprevisível espontaneidade da declaração daquele senhor, acabei traçando um paralelo com os cantinhos da nossa mente. Sim, porque se trata, igualmente, de refúgios para os quais nós todos recorremos nas horas de aflição.”


A DENSIDADE DE SUAS ENUNCIATIVIDADES

O terceiro parágrafo de seu texto em estudo, Os cantinhos da casa, é denso em enunciatividade. É-nos oportuno mergulhar na enunciatividade, no tempo psicológico proposto pelo autor. O próprio título da crônica nos convida para esse mergulho. O emprego da função emotiva ( uso da 1ª pessoa ), ressaltando o “eu” coletivo, torna cada um de nós exponencial. Leva-nos para nossos cantinhos. Somos direcionados para habitarmos nossas cavernas, preservando o valor de nossos refúgios. É, digamos, o endereço de nossas catarses.

Neste terceiro parágrafo, observa-se o primeiro período expressar uma afirmação: “Eu tenho a convicção que todos nós cumprimos o caminho de nossas vidas percorrendo infinitas etapas que ficam bem ou mal registradas na fluidez da nossa memória, mas reservamos uns cantinhos especiais para certos momentos”. Em seguida, vem-nos o autor com uma estrutura interrogativa: “Que momentos são esses?”Eis mais um paralelismo. É a porta de entrada para a densidade enunciativa que segue no parágrafo. O emprego de “Acho” dá transparência à subjetividade no texto. A repetição do “Acho” solidifica uma gradação de enunciatividades. As interrogativas que seguem concebem a presentificação do autor em seu texto. É o agora em evidência decantado no tempo psicológico. Leiamos o parágrafo por inteiro:

Eu tenho a convicção que todos nós cumprimos o caminho de nossas vidas percorrendo infinitas etapas que ficam bem ou mal registradas na fluidez da nossa memória, mas reservamos uns cantinhos especiais para certos momentos. Que momentos são esses? Acho impossível classificá-los por gênero. Acho que só podem ser classificados por graus. Graus de intensidade emocional. Acho que é para eles que nós reservamos esses espaços especiais. Para que fiquem indeléveis. Serão então os mais relevantes registrados até uma altura qualquer de nossas vidas? Serão, se por isso entendermos, os que fizeram vibrar com maior intensidade as cordas da nossa sensibilidade. Pois esses momentos felizes ficam guardadinhos na mente e é à lembrança deles que nós apelamos – consciente ou inconscientemente – na busca de uma compensação, um refúgio, uma consolação da qual precisamos para enfrentar alguma situação adversa que venhamos a atravessar.”

O último parágrafo traz convicções àquele que foi em busca de respostas em sua profunda enunciatividade. Foi, portanto, oportuno iniciar o derradeiro parágrafo com “Pois é”. As inúmeras exemplificações apresentadas comprovam respostas aos seus questionamentos: “a leitura daquele livro tantas vezes adiada e finalmente realizada com satisfação plena”, “aquele singelo, mas para a gente importante negócio fechado...”. Enfim, as inúmeras exemplificações são comprovações ao leitor e a si mesmo, ou seja, ao próprio investigador no texto composto. Ei-lo:

“Pois é. Parece que acabo de descobrir que os cantinhos privilegiados da memória são muito parecidos com os cantinhos ambientais da intimidade da gente. Eles guardam a lembrança de momentos entre os mais emocionantes e significativos, produzidos pela evolução do intelecto, do relacionamento e da sensibilidade das pessoas. Aquele primeiro e tão suspirado encontro amoroso..., a leitura daquele livro tantas vezes adiada e finalmente realizada com satisfação plena..., aquele singelo, mas para a gente importante negócio fechado, em certos momentos, com um simples aperto de mão..., assim como tantos outros pequenos e grandes prazeres e algumas realizações que pontuam a nossa existência acontecem nos mais diversos lugares, neles incluídos os tais cantinhos da casa da gente. Chegando ao ponto daquele senhor considerar o seu sumiço como a maior perda provocada pelo desmoronamento do imóvel. Uma perda inestimável no momento em que eles tinham virado apenas cantinhos da memória.”


A predominância é da enunciatividade, tendo a unidade textual como análise. Não poderia o cronista fugir a isso. O título que ele selecionou para o texto impõe a acentuação da subjetividade. Apenas o primeiro parágrafo é expressivo em enuncividade. Da perda de apartamentos, o cronista assenta em páginas perdas incomensuráveis, que talvez o jornal não viesse a permitir em outro gênero textual: o desmoronamento dos cantinhos em cada apartamento de seus mais diversos moradores, representados coletivamente por um de seus moradores. O uso do gerúndio – às vezes tão ignorado em seu valor por quem orienta para composição de textos – espelha soma contínua; o emprego da conjunção adversativa reflete subtrações; suas reticências também somam indefinições aparentes, mas que salvaguardam subjetividades de seus leitores sensíveis e dos que pensam estar à margem do conteúdo ideativo da crônica; os parágrafos dividem a progressão temática em apartados que não são ilhas, mas que fronteirizam cada cantinho de um texto reservado a um comício dentro de nossas casas, longe de engenheiros alheios, longe de acidentes naturais, longe de órgãos e técnicos inconvenientes e insensíveis aos apartamentos dentro de nós.

CONCLUSÃO

Ler Italo Bianchi é, pouco a pouco, instrumentalizar-se de plataformas sólidas. A seqüência de suas idéias nos faculta engenharias de composições com nítida progressão. É um Pitágoras sem o uso de recursos naturais da matemática. Sugiro uma primeira leitura corrida e, depois, ir acompanhando os passos que em gradação compõem a unidade ideativa. Assim, encontraremos afirmações seguidas de justificativas. Estas, seguidas de exemplificações. Estas, por sua vez, ligadas a enunciatividades. Ou, também, para apresentar uma outra horizontalidade, iremos nos deparar com afirmação + afirmação + afirmação + exemplificação + exemplificação + exemplificação + comparação + conseqüência + afirmação ( para lembrar o último parágrafo do texto que reservei aqui para leitura: Os cantinhos da casa. Se o olhar é vertical, temos as unidades ideativas da crônica compostas por parágrafos que asseguram partir do espaço extrínseco ao espaço intrínseco, a semelhança de um edifício que, ao desmoronar, nos rouba tudo o que nos circunda e nos refugia sob escombros alheios aos que desesperadamente querem alcançar, mas que são inatingíveis, pois pares e mãos de bombeiros não conseguem chegar lá.

Edvaldo Ferreira1


Ao som de 'É tão simples' - Chico Buarque
Degustando Vinho Tinto Suave
Imagem:'Parker 51' - Dario

1Edvaldo Ferreira, meu mestre e confrade, é professor universitário catedrático em Língua Portuguesa, poeta e escritor.

2 comentários:

Kari disse...

A pedido do meu professor, fui no google para procurar sobre: enuncividade e enunciatividade.

Acabei encontrando o teu blog e esse texto tão ótimo. E quando eu chego ao final do texto, descubro que foi o meu professor que escreveu, vê se pode?
Muito bem escrito, claro!

-Abraços
Kari

Lucas Abravanel disse...

Não há o que contestar, o mestre Edvaldo Fereira é realmente um majestático momumento da pedagogia brasileira.