Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Poetas são gente

Crônica


Eu vivo pra poesia mas poetas não vivem pra mim. Espero que eles me alimentem como a um coelho faminto. Eles não sabem disso. É melhor mesmo que não percebam o quanto são necessários.

De outro modo seríamos ultrapassados por eles e eles não saberiam quando parar. Um excesso de poetas não seria uma boa idéia pro nosso mundo. Nosso mundo necessita apenas de um certo número. Embora isso ainda não tenha sido atingido é importante que a poesia seja controlada.

Eu sei. Tenho observado poetas vagabundeando por aí, esperando o momento de atacar. É pior do que haker atacando. Uma visão horrível. A pessoa atacada correrá pela rua gritando. Pode até amaldiçoar o sistema, e fugir de casa levando sua filha com ele.

Poemas têm um jeito de infeccionar os pobres idiotas que os escrevem. Poetas ficam em silêncio durante conversações, esperando uma brecha. Subitamente, sem aviso, um poeta falará uma sentença que acabou de pensar, e aqueles em volta gritarão como que atingidos por um curto-circuito.

Você gostaria que isso acontecesse freqüentemente? Levaria meses pra se voltar a qualquer aparência de normalidade. Isso pode ser uma boa de vez em quando, como mudança. Mas pára um momento e procura imaginar o pessoal do governo de Sua Majestade todos os dias fazer suas transmissões, como faz, mas cada uma ser um poderoso poeta.

A confusão seria indescritível. A nação ia parar nos trilhos e colher flores pros vizinhos. Carros iriam se abalroar no tráfego pros motoristas saltarem e apertarem as mãos. Greves seriam desnecessárias pois ninguém trabalharia. A vida seria boa demais pra se perder. Cada dia seria vivido sem plano e cada momento saboreado como vinho novo. Cada pôr-do-sol seria uma revelação e uma promessa pra amanhã.

Todo mundo faria amor. Mesmo os doentes. Melhor seria os poetas não usarem palavras. Melhor que nascessem mudos. Melhor que cortasssem as línguas, se falassem. E melhor ainda, se pensassem, ficassem em silêncio. Deus nos proteja de suas invocações ferozes, pelo menos até termos tempo de praticar exercícios de poetas mortos, pra estarmos em forma a fim de tentar hoje outra vez.

Poetas não percebem. Enquanto vivem são eras daninhas. Quando morrem são fertilizantes.

Millôr Fernandes


Ao som de 'Samba para Vinícius' - Chico Buarque e Toquinho
Degustando Johnnie Walker Black Label
Imagem: 'Sr. Raimundo' - Cláudio Márcio Lopes

2 comentários:

Anônimo disse...

"Cada dia seria vivido sem plano e cada momento saboreado como vinho novo. Cada pôr-do-sol seria uma revelação e uma promessa pra amanhã."

Ia ser interessante meu caro amigo, se todos nós vivessemos como poetas, infelizmente existe, na maioria das pessoas, uma "retórica-utópica" que nunca se concretiza.

Boa crônica. O mundo seria uma ladainha perfeita se todos tivessem talento com palavras! =]

Abs.

Janaina R. Brasil

layla lauar disse...

Se VocÊ ficou fã do meu blog, AMEI o seu, também adoro poesia, Chico Buarque e como toda boa mineira, adoro um cafezinho ... UAI!

Abraços Ismael, vou voltar, certeza, com mais calma para ler tudo aqui. Obrigada pela visita.