Ensaio

A Ricardo Gurgel
E me escapou uma lágrima.
Perda de final de campeonato? Não, independente do esporte e, menos ainda, se está jogando ou assistindo passivamente. Não. Nesses momentos não me deixo escapar lágrimas. Eu grito, enraiveço-me e acompanhado de soluços derramo lágrimas traiçoeiras.
Conquista de uma vaga no emprego? Essa situação passa longe: pulo, abraço, saio para jantar, distribuo beijos a quem amo (recebo aos montes também) e sorrio muito a ponto de chorar -- doce água abençoada --, e com veemência.
Ah, já sei! Perda ou saudade de um grande amor? Talvez alguns de vocês pensem assim. Claro que não! Canto, canto muito nessas horas. E o canto é de um gosto acre, na escuridão, e com muitas pausas -- sempre impedindo águas torrenciais de inundarem meus olhos e afogarem minha boca.
Traição? Desfaleço.
Um corte profundo, talvez? Insistentemente não. Meu corpo treme, queima, dói, xingo tudo e todos! E sofrendo derramo lágrimas à contra-gosto.
Injustiça? Luto.
Nascimento de um filho? Nada disso. Nessa ocasião eu viro profissional: bato foto, filmo, escrevo (tudo com um ar abobalhado). Nessas horas, até as lágrimas descem dançando.
Morte? Malditas lágrimas de sangue.
Laureado de turma? Nota mais baixa? Final de férias? Perda de dinheiro? Ganhar muito dinheiro? Não receber ligação da amada?
Não, não e não.Tantos momentos tristes e alegres com as mais variadas atitudes, mas com algo em comum: não deixo escapar uma lágrima. Elas saem em bando e de fugitivas.
Uma situação, porém, por mais singela que seja, é o suficiente para eu dar o passaporte de liberdade para essa companheira muitas vezes rebelde, outras vezes melancólica.
Deixo o frio tomar conta do meu corpo na preparação do calor intenso logo a seguir. Fixo o olhar, ao mesmo tempo em que desligo do mundo, enquanto ela vai tomando conta da órbita que tanto conhece. Não faço objeção. Depois, sinto-a molhando meus cílios e tomando forma na iminência de escorrer em gota. Ela cumpre seu papel. Minhas mãos ficam paradas e deixo-a escolher seu trajeto até dissolver-se invisível, e é nesse momento que acordo, ou melhor dizendo, eu nasço.
Esse momento é único todas às vezes. Ah...Benditas palavras de carinho -- inesperadas e gratuitas -- de um amigo sincero para renovar minhas esperanças em cada nascimento.
João Antonio Ribeiro

Degustando Cappuccino
