Café Alexandrino - O lado aromático da vida

sábado, 5 de novembro de 2005

Morena-flor

Crônica


Domingo passado, o sol me acordou algumas horas depois dele levantar. Como de costume, fiquei poucos minutos deitado olhando para cima sem pensar em nada. Depois deste breve momento preso ao infinito desconhecido, me levantei. Abri a persiana por inteiro com intenção de ver o mar. Encantei-me! Um azul forte, e ao mesmo tempo suave, inundou o meu olhar sem pedir permissão. Ao mesmo tempo, uma paz indescritível invadiu-me e, espontaneamente, sorri.

Debaixo do chuveiro frio, lavei-me de toda a preguiça e a vontade de voltar para a cama. Tomei um suco de uva bem concentrado -- daqueles que chegam doer perto do ouvido -- , comi dois mistos-quentes bem recheados e desci.

A praia, como todo domingo, estava repleta. Nunca vi ambiente mais democrático como aquele! Empresários ricos com óculos de grife famosa, colares de ouro e as barrigas pendurados, comerciantes falidos cultivando bigodes sebosos com uma lata de cerveja na mão, playboys mimados com adereços da "nike" fazendo poses para todos os seres do sexo feminino que passavam, garotos da favela suados e felizes jogando futebol, madames fofoqueiras tomando água-de-côco na sombra, domésticas compulsórias não menos fofoqueiras tomando sol, velhos se achando novos, novos quietos com espírito de velho, vendedores de cerveja, barraqueiros, farofeiras, garotos de programa, homossexuais, bissexuais com suas esposas iludidas, putas e todos os filhos de puta. Uma perfeita simbiose. Vistos assim, daquela forma, ninguém haveria de imaginar que em todos os outros dias eles se debatiam, se xingavam e se matavam mutuamente.

Chamou-me a atenção um grupo de negros sentados na areia bem perto do calçadão. Pareceu-me ser três famílias de amigos recém-acasalados. Um deles -- acredito ser o de melhor condição financeira -, deixou seu FIAT 147 por perto com o porta-malas aberto, de onde se ouvia bem alto todos os tipos de depravação musicada. Naquele embalo frenético, o suor escorria pelas nádegas avantajadas daquelas mulheres, enquanto seus companheiros davam gargalhadas a cada gole de caipirinha. Notei que um deles, sempre que terminava uma música, chamava sua "flor", como ele dizia, para dar-lhe um beijo. Parecida com uma flor, só tinha mesmo a cor radiante do biquíni fio-dental.

Enquanto olhava aquela cena, passou bem perto de mim um cinqüentão que parecia endinheirado. Percebi que ele olhava aquela bunda escura e sem celulite que tanto causava inveja às mulheres que viviam em academias e nas salas de cirurgia plástica. "Que morena gostosa, essa rapariga!", foi o que pude escutar daquele senhor que falou sozinho em tom de admiração e desdenho.

Continuei caminhando e pensando e seguindo para longe daquela canção. Aquela mulher era "flor de um jardim" de valor inestimável. Aquela mulher era uma "rapariga morena", somente. O mesmo ambiente, vários mundos. A mesma pessoa, duas pessoas. Conceitos, simplesmente. Pré-conceitos.

Ismael Alexandrino



Ao som de 'Morena-flor' - Vinícius de Moraes e Tom Jobim
Degustando Café Expresso com Chatilly
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3 comentários:

Anônimo disse...

Em primeiro lugar, adorei o seu lay out!
Em segundo, notei que vc curte escrever!
Em terceiro, lendo o seu post me deu saudade da praia
e em quarto, voltarei mais vezes, ou seja, o quarto não será o último dos meus comentários! ;-)

Ronaldo Faria disse...

A praia é um simples metro quadrante do quadro que é a vida, com suas blasfêmias e anuências. Onde se misturam desejos e vida, contradições e ilusões, sentimentos e tesões. Tua praia, portanto, reflete isso: o olhar de ver além de quadris e bundas (tão essenciais à beleza das ondas ao fundo). É isso: a praia é um teatro que abre seu palco, todos os dias, aos atores sem platéia no diuturno ensaio de uma peça na eterna (mesmo que a eternidade não exista entre os mortais) busca da felicidade.
Ronaldo Faria

Anônimo disse...

estou extasiado!
quem dera escrever crônicas assim!
paulo cazula!